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O drama das meninas que se casam crianças

10/03/2018

Raquel (nome fictício) observa a massinha de modelar entre as mãos e brinca de criar formas enquanto fala sobre o dia em que foi estuprada aos 10 anos, em Cajazeiras, distrito onde mora na zona rural de Codó (MA). O rapaz, então com 19 anos, fugiu. Ela engravidou. “A médica disse que não tinha espaço para sair o bebê por parto normal, então fiz cesárea”, conta. A filha nasceu e foi cuidada pela avó.

Aos 13, foi morar com Raimundo, um pedreiro de 35 anos que conheceu na casa vizinha. E engravidou novamente. Ela foi novamente vítima de estupro – mesmo em união informal, o caso configura estupro de vulnerável pelo Código Penal, por envolver sexo com uma pessoa menor de 14 anos.

A história de Raquel compõe o retrato de uma realidade quase invisível no Brasil, apesar de ser uma prática antiga e com dimensão global: o casamento infantil. No País, há poucos dados disponíveis para dimensionar o problema. Dados do Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, os últimos disponvieis, indicam que 877 mil mulheres que têm hoje entre 20 e 24 anos se casaram quando tinham até 15. O próprio governo federal admite não saber quem são e onde estão as meninas casadas.

Segundo o primeiro estudo feito no País especificamente sobre o tema, realizado pelo Instituto Promundo entre 2013 e 2015, Maranhão e Pará são os Estados com maior prevalência de uniões precoces. O levantamento mostra que as meninas se casam e têm o primeiro filho, em média, aos 15 anos. Os homens são nove anos mais velhos.

A pesquisa sugere que o casamento de uma menina com um homem muito mais velho – o caso de Raquel – é associado a condições financeiras precárias da família da garota. O homem mais velho surge como alguém capaz de fornecer apoio financeiro a ela e aliviar sua família de sustentá-la.

Recusa do namoro. No caso de Raquel, a mãe negou por duas vezes os pedidos de namoro de Raimundo. Ele, então, propôs algo diferente: morar e se casar com a menina. E a mãe aceitou. “Ela viu que ele queria morar comigo, ter responsabilidade para cuidar de mim. Só por isso ela deixou”, relata Raquel. “Se eu quisesse só namorar, acho que a mãe e o padrasto dela não iam deixar. Eu não queria fazer que nem o outro, que engravidou e foi embora. Pelo menos ponho num barraco. Falei para a mãe dela que iria colocar Marília no bom caminho”, diz Raimundo.

Jovem parda de 16 anos, costas encurvadas, unhas dos pés pintadas de verde com desenho de flor e um jeito acabrunhado de falar, Raquel interrompe a entrevista para tirar a panela do fogo. O marido, hoje com 38 anos, está para chegar e o almoço precisa estar pronto.

Quando não está consertando televisões dos vizinhos ou tocando como DJ, Raimundo “caça” – verbo que faz questão de usar – no mato o de comer. Em dia bom, ele carrega nas costas um tatu peba ou uma cotia. “Foi ele que me ensinou a cozinhar, eu não sabia. Aprendi a fazer arroz, temperar feijão, botar carne no fogo. Aprendi também a cozinhar as caças dele.”

Por mês, a renda do casal é, em média, R$ 300. No mesmo quarto de uma casa de pau a pique dormem os dois e a filha. Raquel, entre uma gestação e outra, abandonou a escola, repetiu o 7.° ano e agora deveria iniciar o ensino médio. As aulas já começaram e ela admite que “vai ser difícil” frequentar a escola cuidando da filha de três anos. Já Raimundo largou os estudos na 5.ª série.

Liberdade. A pesquisa do Promundo atribui o casamento infantil a três principais causas. A primeira é vulnerabilidade das comunidades, caracterizada por baixos níveis de
escolaridade e infraestrutura, e fraca presençado Estado. Em segundo lugar, as adolescentes querem sair da casa dos pais porque desejam começar a namorar e ir a festas e, por isso, veem no casamento uma forma de fuga das proibições dos pais. A terceira causa mais citada pelas adolescentes como motivação é a fragilidade das estruturas familiares, que leva as meninas a buscar estabilidade e segurança fora de casa.

Moradora de Timbiras (MA), Flávia casou aos 13 anos com o pedreiro Eduardo, de 20. Estão juntos há três anos e não têm filhos. Flávia conta que a motivação para sair de casa foi a privação de liberdade. “Minha mãe não deixava eu sair. Eu ficava revoltada, queria ir para as festas. Ela proibiu e foi até pior. Se ela tivesse deixado, eu estaria com ela”, diz a menina, hoje com 16 anos. No mesmo dia em que foi pedir aos pais de Flávia para namorar e casar com ela, a menina já arrumou as roupas e foi embora para a casa da família de Eduardo.

Quem também não quis esperar a reação dos pais e saiu de casa no mesmo dia em que o namorado pediu a mão dela foi Sarah, de 16 anos. Hoje ela mora com o marido Hugo, de 23, que trabalha na roça onde eles residem com o filho de 4 meses no povoado de Almas Sozinhas, em Timbiras (MA). Ela tinha 15 anos quando o conheceu e engravidou um mês após a vida de casada. “Saí de casa mais por causa do pai. Eu queria um namorado e ele não deixava. Meu pai dizia que se meu namorado aparecesse lá, ele ia dar um tiro.” Hoje aos 16, depois de interromper os estudos para cuidar do filho, Raimunda se arrepende: acha que não fez a escolha certa ao casar cedo e engravidar. “Quando fui morar com ele, nenhum de nós dois estava preparado. Mas só hoje eu vejo isso. Era para ter um pouco mais de paciência, mas, por causa do pai, não tive.”

A ânsia por liberdade, a desestrutura familiar e a vulnerabilidade das comunidades atingem também os grandes centros urbanos, especialmente a periferia. É o caso da desempregada Daniela dos Santos Alves, de 28 anos, moradora da região de Pimentas, em Guarulhos (SP). Ela engravidou e se casou aos 17, mas se arrepende. “Achei que sairia daquela rotina da casa da minha, que teria liberdade. Mas não tive, até piorou. Dobrou a responsabilidade”, conta.

Segundo Viviana Santiago, gerente de gênero e Incidência Política da ONG Plan International, a maioria das meninas vêm de lares conturbados pela pobreza ou de relações tumultuadas com os responsáveis. “Em um contexto de meninas com acesso à escola regular e famílias que têm condições socioeconômicas minimamente equilibradas, o casamento vai descendo como opção de vida”, explica. “Quanto menos acesso aos direitos e à possibilidade de desenvolvimento, mais o casamento cresce como opção, inclusive de transformar essa menina em respeitável.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Juliana Diógenes, enviada especial
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