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O silêncio de um inocente

09/05/2020
O silêncio de um inocente

Promotor Sidrack Nascimento fala sobre morte da esposa

Sidrack Nascimento (*)

Dez anos podem não ser mais que um piscar de olhos pra quem viveu, com profundo amor e cumplicidade, o auge de uma vida compartilhada, marcada por jantares festivos, viagens memoráveis pelo mundo, encontros com amigos nos finais de semana, momentos inesquecíveis a dois.

Mas um único ano pode significar uma eternidade, pra quem, durante esse tempo, sufoca consigo, e somente consigo, a angústia do luto e da iniquidade, a insuportável dor da perda e o imenso peso da acusação dos que são capazes de atropelar a dignidade do próximo.

Hoje faz 365 dias que Martha está com Deus.

Na manhã da primeira quarta-feira de maio de 2019, minha companheira de mais de uma década tirou sua própria vida, acometida por um surto psicótico. Aos meus pés e no jardim de nossa casa, vi o que não poderia imaginar nos piores pesadelos: uma cena tenebrosa, que, desde então e até hoje, revive e toma conta dos meus pensamentos, tragando, por inteiro, o viço dos dias que ainda tenho pela frente.

Desolado naquele momento de perda, contei com a benevolência gratuita dos verdadeiros amigos. Confidentes dos problemas psiquiátricos que acompanhavam minha falecida esposa e do carinho que eu lhe dedicava, me acolheram e me fortaleceram. Ainda que entendessem que, naquelas circunstâncias, não havia quem pudesse evitar o pior, sabiam da sensação de impotência e do inexplicável sentimento de culpa com que eu passaria a conviver a partir daquele episódio.

Por outro lado, senti na pele a irresponsabilidade de outros tantos, que, desumanamente, me impingiram o título de criminoso. Acusado da prática de homicídio contra Martha, fui impedido de comparecer a seu velório e sepultamento. Cegos em seu egoísmo, ignoraram o surto psicótico que desencadeou o suicídio e iniciaram uma campanha farisaica, plantando, em jornais sensacionalistas, boatos os mais absurdos, com o propósito de me incriminar do que jamais poderia passar pela cabeça de quem dedicou trinta e seis anos de sua vida ao ministério sacerdotal, com respeito ao próximo e fé inabalável.

No dia 6 de junho de 2019 foi concluído o inquérito. Considerando os laudos do Instituto Médico Legal e do Instituto de Criminalística, bem como o depoimento do jardineiro do condomínio onde morávamos – que a tudo, absolutamente a tudo, assistiu –, foi oficialmente confirmado o suicídio.

Imaginei que, a partir dali, arrefeceria a, até então, injustificável sanha persecutória. Eis que, na sexta-feira daquela mesma semana, fui advertido, pela primeira vez: “Estão de olho no dinheiro. Vão fazer o que for preciso”.

Guiados pela ganância e pela cobiça, novas notícias continuaram (e continuam) sendo levadas, não graciosamente, às capas de jornais de questionável credibilidade: “Sidrack nega direitos legítimos do enteado”, “Sidrack Nascimento vai encarar família de esposa na justiça”, “Sidrack não terá direito a dinheiro deixado por Martha”. A essa altura estava claro: o propósito era eminentemente patrimonial.

Enquanto, recolhido em orações, tentava avançar no meu luto, fui alvo de toda ordem de acusações e impropérios. Não respondi a absolutamente nada, como, aliás – quem me conhece, sabe – não sou de fazer. Deixei que o Senhor tomasse conta do destino e se encarregasse de assentar as coisas. Ante a possibilidade real de protestar aos quatro cantos contra as dezenas de matérias falaciosas – caluniosas, difamatórias e injuriosas – a meu respeito, optei pelo silêncio.

Em quarentena, ainda mais recluso do que habitualmente sou, tenho refletido constantemente sobre o significado da provação por que passei e estou passando. E, assim, resolvi, de forma despretensiosa, redigir este artigo, como terapia e como catarse. Escrevo pra me libertar do trauma que diariamente me consome. Pra me alforriar da dor da perda e me blindar dos sentimentos mais mesquinhos.

Se Martha estivesse entre nós, em momento de lucidez, olharia nos meus olhos, enxugaria minhas lágrimas e repetiria comigo a frase que sempre gostou de me dizer, parafraseando Mário Quintana: “estes que aí estão, atravancando teu caminho, eles passarão; e tu passarinho”.

Que sua memória seja respeitada, eu imploro. Que a lembrança do seu sorriso se mantenha viva entre todos nós. É assim que eu quero sempre lembrar de você.

(*) É promotor de Justiça