Internacional
Brasil não compra briga com EUA e ignora potencial de relações com Coreia do Norte, diz analista

Rússia e Coreia do Norte inauguram voo direto entre Moscou e Pyongyang para desenvolver infraestrutura e logística binacionais. Apesar do potencial de cooperação, Brasil não se dispõe a entrar na lista de países que desafiam o bloqueio militar e econômico imposto pelos EUA contra a Coreia do Norte.
Nesta segunda-feira (28), foi inaugurado o voo direto entre as capitais da Rússia e Coreia do Norte. A rota aérea de oito horas entre Moscou e Pyongyang foi estabelecida por orientação do presidente russo Vladimir Putin para garantir o desenvolvimento de logística civil entre os dois países.
"Hoje, mais uma vez, comprovamos na prática o nosso compromisso de manter relações fraternais com países amigos", disse o ministro russo Aleksandr Kozlov, copresidente da Comissão para Desenvolvimento Econômico e Comercial das relações entre Rússia e Coreia do Norte. "Nos últimos dois anos, trabalhamos muito para expandir as capacidades logísticas dos nossos países."
Segundo o ministro de Recursos Naturais e Ecologia Kozlov, que esteve no voo inaugural, "estamos trabalhando para desenvolver todas as áreas logísticas", como conexão ferroviária de carga e passageiros, além da construção da ponte sobre o rio Tumen, conectando os dois países.

O voo partindo de Moscou complementa as rotas semanais já disponíveis entre Vladivostok e Pyongyang. Mesmo assim, a demanda por voos diretos de Moscou é alta, já que as passagens para o voo inaugural foram todas vendidas em menos de dez dias.
O estreitamento das relações entre Rússia e Coreia do Norte contrastam com o baixo nível do relacionamento entre Brasília e Pyongyang. Apesar de embaixadas terem sido inauguradas em Brasília e Pyongyang durante os primeiros mandatos de Lula da Silva, o relacionamento bilateral não deslanchou.
"Durante o segundo mandato de Lula, ensaiou-se uma aproximação e a possibilidade de exportar produtos do agronegócio brasileiro para a Coreia do Norte", disse o doutor em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e analista de relações internacionais Diego Pautasso à Sputnik Brasil. "No entanto, nos governos Temer e Bolsonaro a embaixada brasileira foi praticamente desativada."
Atualmente, a embaixada opera de forma limitada, sob a liderança do embaixador Felipe Fortuna. Chefe da missão diplomática em Pyongyang dede 2018, Fortuna ficou incapacitado de voltar ao país entre 2020 e 2024, em função da pandemia de COVID-19.
"Apesar do formato restrito, o Brasil é um dos únicos países das Américas que mantêm representação diplomática na Coreia do Norte", notou o historiador da Universidade Estatal de Moscou (MGU, na sigla em russo) Rodrigo Ianhez à Sputnik Brasil. "E as atuais dificuldades na operação vêm desde a pandemia de COVID-19 e afetam todas as embaixadas em Pyongyang, não só a brasileira."
Exceções notáveis são as embaixadas da Rússia e China, que funcionam com maior fluidez. Na área de turismo, cidadãos russos e chineses estão entre os poucos autorizados a visitar a Coreia do Norte.

"Turistas russos foram os primeiros a visitar o novo resort norte-coreano em Wonsan. Pelos comentários, eles ficaram muito impressionados com a qualidade do serviço na Coreia do Norte", disse Ianhez.

Além de turistas, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, também esteve no resort de Wonsan, à beira do mar do Japão (também conhecido como mar do Leste). O governo de Pyongyang investiu na construção de um resort de ski em Masikryong, a fim de garantir turismo internacional em todas as estações do ano.
"A atividade turística será um vetor importante para o acesso da Coreia do Norte à moeda forte, por isso há interesse em atrair turistas estrangeiros", disse Ianhez. "A tendência é que eles abram cada vez mais para se beneficiar do investimento realizado na infraestrutura turística de resorts como Wonsan e Masikryong."
De acordo com a representação brasileira em Pyongyang, "recentemente, a Embaixada do Brasil recebeu informação do Ministério das Relações Exteriores da RPDC de que o país deverá, em breve, reabrir suas fronteiras para turismo de cidadãos estrangeiros de algumas nacionalidades, incluindo brasileiros".

Enquanto aguardam, os brasileiros avaliam quais os setores potenciais para cooperação, além do tradicional comércio de commodities. Ainda que o Brasil não precise de Pyongyang para escoar sua produção agrícola, poderia travar acordos de transferência de tecnologia de ponta com a Coreia do Norte, considerou Ianhez.

"A dificuldade é que o Brasil tem sido bastante conservador e não parece disposto a enfrentar os países que apoiam o isolamento da Coreia do Norte", considerou Ianhez. "O Brasil não tem comprado brigas que são de seu interesse imediato, tampouco o faria para acessar tecnologia norte-coreana."
Do alfinete ao foguete
A situação econômica, política e militar tensa com a qual a Coreia do Norte convive desde a década de 50 impõe severas restrições ao desenvolvimento do país. Nesse contexto, os norte-coreanos formularam um modelo de gestão próprio, chamado "socialismo juche".
"De forma sucinta, podemos dizer que o socialismo juche se baseia na ideia de autossuficiência", explicou Pautasso. "A ideia de autonomia política e econômica do socialismo juche é moldada tanto por heranças culturais milenares da Coreia, quanto pelo fato de o país estar em permanente cerco e estado de guerra."
A Guerra da Coreia, travada entre 1950 e 1953, formalmente segue em curso, já que as partes assinaram somente um armistício, e não um acordo de paz. Até hoje, a fronteira entre as Coreias do Norte e do Sul (formalmente, uma linha de cessar-fogo) é a mais militarizada do mundo.

"Convenhamos que a Coreia do Norte é um país que está de fato sob cerco militar norte-americano", disse Pautasso. "Os EUA mantêm 30 mil homens na fronteira da Coreia do Norte e realizam exercícios militares regulares, inclusive utilizando aeronaves B-2, capazes de portar armas nucleares."
Além da pressão militar, os EUA mantêm forte cerco econômico à Coreia do Norte, sancionando qualquer empresa ou país que estabeleça relações econômicas com Pyongyang. Mesmo durante períodos de seca severa na Coreia do Norte, nos quais a população passou por situação de grave insegurança alimentar, Washington não flexibilizou seu embargo.
"Os EUA atingem vários objetivos geopolíticos mantendo o embargo contra a Coreia do Norte: primeiro, mantêm a soberania da Coreia do Sul limitada, com forte presença militar norte-americana. Segundo, pressionam pela remilitarização do Japão e, por fim, mantém-se a península coreana em permanente crise, garantindo um ponto de tensão nas fronteiras de Rússia e China", resumiu Pautasso.
Nesse contexto, o socialismo juche norte-coreano apostou na indústria bélica não só como instrumento de dissuasão, mas também de desenvolvimento econômico e científico.

"Hoje vemos que a Coreia do Norte, um país pequeno e sob embargo, foi capaz de construir sistemas de mísseis de longo alcance e desenvolver um programa nuclear", considerou Pautasso. "Diferente de Síria, Afeganistão, Líbia ou Iraque, a Coreia do Norte é um dos únicos países que se manteve de pé dentre os classificados pelos EUA como 'eixo do mal'."
Segundo Pautasso, "esse é um feito considerável se considerarmos que a Coreia do Norte tem um território pequeno, poucas terras agricultáveis e ausência de recursos básicos como petróleo ou fertilizantes".
"É muito difícil que um país nessas condições produza do alfinete ao foguete. Por isso, a liderança de Kim Jong-un procura se abrir um pouco mais ao estrangeiro, como no caso da Rússia. Mas podemos dizer que a Coreia do Norte, hoje, é um país que tira leite de pedra", concluiu o especialista.
Em junho de 2024, Rússia e Coreia do Norte firmaram o Tratado de Parceria Estratégica Abrangente, durante a visita de Estado realizada pelo presidente Vladimir Putin a Pyongyang. O tratado prevê cooperação em áreas como desenvolvimento industrial e tecnológico, além de assistência militar em caso de agressão estrangeira.
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