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Com projetos de integração regional no freezer, governo Lula priorizará a China na política externa

Com a crise na Venezuela e fissuras na América Latina, fontes afirmam que governo destinará esforços para 'elevar' a relação com a China

Agência O Globo - 25/08/2024
Com projetos de integração regional no freezer, governo Lula priorizará a China na política externa
Presidente Lula. - Foto: Divulgação

A crise política na Venezuela evidenciou o que muitos já prenunciavam, mas agora é um fato assumido sem rodeios por fontes do governo Lula: a ambição de retomar um projeto de integração regional coletivo foi para o freezer. Diante de uma situação crítica, desencadeada por uma eleição presidencial que terminou em denúncias de fraude e no não reconhecimento do resultado anunciado pelo Conselho Nacional Eleitoral venezuelano por parte de diversos países, entre eles o Brasil, a América Latina mostrou suas fissuras, cada vez mais profundas. Sem poder cumprir uma das metas mais importantes que tinha em matéria de política externa, o governo Lula 3 destinará mais esforços e energia a outras apostas, sendo a principal delas, afirmaram as mesmas fontes, “elevar o patamar” da relação com a China, que acaba de completar 50 anos.

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As divisões entre os países da região — incapazes de articular uma posição comum sobre a crise venezuelana — são um problema com o qual o Brasil de Lula deverá aprender a conviver. Os vínculos que mais dores de cabeça causam ao governo brasileiro são com a Venezuela de Nicolás Maduro e a Argentina de Javier Milei. As divergências são tão evidentes que representantes do governo brasileiro não conseguem — nem querem — mais escondê-las. Um claro sinal disso é a decisão de organizar no dia 24 de setembro, em paralelo à Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, um encontro que terá como temas centrais a defesa da democracia e o combate ao avanço da extrema direita no mundo. O Brasil está liderando a iniciativa com a Espanha, e serão convidados países como França, Alemanha, EUA e, na região, apenas Colômbia, Chile e México. As situações na Argentina e na Venezuela serão parte da agenda, mas seus governos, como era de se esperar, não serão convidados.

Salto qualitativo

Tampouco a China, país que, em palavras de uma fonte do governo, “foge do assunto democracia”. Mas o Brasil, apesar de também ter diferenças com o governo de Xi Jinping — que em 24 de novembro fará uma visita de Estado ao Brasil após participar da cúpula de líderes do G20, no Rio — está empenhado e interessado, disse uma fonte do governo, em “dar um salto qualitativo” na relação com o país que hoje representa mais de 60% do superávit comercial brasileiro. As exportações continuam sendo, em sua grande maioria, commodities, e o objetivo do Brasil é justamente agregar valor às vendas para o mercado chinês. Também, disseram fontes oficiais, ampliar a cooperação em outras áreas.

O salto qualitativo que Lula espera dar no vínculo com a China poderia implicar a entrada do país na Iniciativa Cinturão e Rota, a chamada “Nova Rota da Seda”, como admitiu o próprio presidente em várias oportunidades recentemente, entre elas durante um discurso realizado no mês passado, em São José dos Campos:

— Como a China quer discutir a Rota da Seda, nós então temos que preparar uma proposta para discutir o que que eu ganho. O que o Brasil ganha se a gente participar desse negócio? Qual é a fatia importante de participação do Brasil?

Com esse interesse como pano de fundo, o presidente pretende participar da próxima reunião de líderes do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec), prevista para meados de novembro, no Peru. Lá estará, também, o presidente da China, entre outros. Na viagem, Lula poderia, ainda, visitar o porto de Chancay, obra da gigante chinesa Cosco Shipping vista pelo Brasil como uma interessante possibilidade de acesso ao Pacífico.

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Relação assimétrica

Mas a eventual entrada do Brasil na Nova Rota da Seda, iniciativa lançada em 2013 pelo governo Xi e que já conta com a adesão de 140 países no mundo (na América do Sul faltam apenas Brasil, Paraguai e Colômbia), gera debate dentro do governo. O entusiasmo do Palácio do Planalto contrasta com a “cautela” do Itamaraty, confirmaram fontes.

Para os mais moderados, Brasil e China têm hoje uma relação assimétrica, que poderia ficar ainda mais desigual com a entrada do país em um projeto que abriria as portas para que capitais chineses financiem grandes obras, principalmente na área de infraestrutura. Para os mais empolgados com a ideia, dar à China a possibilidade de incorporar à Nova Rota da Seda um país da importância do Brasil valeria a pena se, em troca, tivéssemos vantagens, por exemplo, em matéria de cooperação tecnológica, inovação e transferência de conhecimentos em áreas como Inteligência Artificial, entre outras. É um passo que será cuidadosamente analisado, frisaram as fontes, mas que hoje representa “uma das principais prioridades de Lula em sua relação com o mundo”.

O Brasil também quer ampliar o estoque de investimentos chineses no país, estimado, em 2023, em cerca de US$ 70 bilhões (R$ 383,5 bilhões). Cerca de 45% desse montante estão concentrados no setor energético, mas também há robustos investimentos em mineração e agricultura.

O interesse pela China cresce enquanto a relação com os vizinhos mergulha num buraco cada vez mais profundo. Para o futuro da integração regional, analisa Pedro Silva Barros, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “a entrada do Brasil na Rota da Seda sem uma governança regional implicaria riscos”.

— Futuros projetos definidos por potências de fora da região no setor de infraestrutura que, por exemplo, liguem apenas uma jazida ou área agrícola diretamente a um porto, não nos ajudam no comércio com a região ou na agregação de valor. O ideal seria atualizar a carteira de projetos conjuntos com os vizinhos e, depois, negociar com os grandes polos de poder, inclusive a China.

Seu diagnóstico do momento latino-americano é “complexo, com desintegração econômica e fragmentação política”, mas, ao mesmo tempo, diz, é preciso “paciência e manter canais de diálogos abertos”, como faz o Brasil com a Venezuela de Maduro.

Quintal desarrumado

A complexidade apontada pelo economista ameaça praticamente paralisar iniciativas como o Consenso de Brasília, lançado em maio na capital brasileira. Num primeiro encontro organizado pelo Brasil, 12 presidentes da região, entre eles Maduro, estiveram presentes. A presidência do grupo passou para a Colômbia em julho, depois de seis meses em mãos do Chile de Gabriel Boric. Pouco se avançou.

Até mesmo a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) está praticamente paralisada por divergências entre seus membros. Além da problemática presença da Venezuela, a organização está há mais de um ano tentando nomear um novo secretário-geral, processo travado por disputas entre Colômbia e Peru, decorrentes da atuação do governo de Gustavo Petro quando o então presidente peruano Pedro Castillo, atualmente preso, tentou dar um autogolpe, em 2022.

A ideia de relançar a Unasul nunca foi abandonada por Lula, mas hoje é mais remota do que nunca. Nos últimos meses foram realizadas reuniões entre governos da região com esse objetivo, confirmaram fontes oficiais, mas a crise venezuelana “impedirá avanços”.

— Hoje não existe espaço para a integração regional. O projeto de Lula começou bem, mas não prosperou. É difícil pensar em integração se Brasil e Argentina não estão juntos — aponta Andrea Hoffmann, professora da Relações Internacionais da PUC.

Para ela, “olhar para a Ásia é quase natural, mas sem esquecer do entorno”. Seu colega João Daniel Almeida, da mesma instituição, concorda:

— Sempre que o Brasil consegue alguma coisa em matéria de integração regional é com a Argentina. É assim desde o barão do Rio Branco — diz Almeida, lembrando que “a relação com a China nos põe numa situação mais enfraquecida”. — Iremos sem ter o nosso quintal arrumado.