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Preservar ou não? Para doação, antiga mansão de chefe da propaganda nazista evoca dilema sobre passado sombrio alemão

Propriedade que pertencia a Joseph Goebbels custa caro aos cofres públicos e foi construída pouco antes da Segunda Guerra Mundial

Agência O Globo - 13/08/2024
Preservar ou não? Para doação, antiga mansão de chefe da propaganda nazista evoca dilema sobre passado sombrio alemão

Por trás de matagais de faias, cobertos de urtigas e ao lado de um lago azul a uma hora ao norte de Berlim, uma mansão que antes pertenceu a um dos principais estrategistas nazistas apodrece silenciosamente. Ninguém sabe o que fazer com a propriedade ao lado do Lago Bogensee, em Brandemburgo, construída para Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial. Atualmente, pertencente ao estado de Berlim, ela tem se deteriorado custando caro aos cofres públicos, juntamente com um conjunto de dormitórios dramáticos construídos mais tarde pelo Partido Comunista da Alemanha para abrigar uma escola de doutrinação. É um terreno de cerca de 8 hectares que ecoa os passados de dois regimes totalitários.

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Pesada demais para o Estado continuar a manter, proibitivamente cara para a maioria dos investidores imobiliários e manchada pela História, Berlim desistiu de vendê-la ou desenvolvê-la. Em vez disso, oferece-a em doação, de graça. (O destinatário, é claro, estaria sujeito à aprovação do governo.)

Em comentários exasperados feitos ao Parlamento, Stefan Evers, o senador estadual de Finanças, fez a proposta — "tirem isso das nossas mãos, ou vamos demoli-la" —, desencadeando um surto de potenciais interessados de todo o mundo.

Houve consultas de um dermatologista que queria abrir um centro de cuidados com a pele e de alguns caçadores de pechinchas, disse Evers recentemente em uma entrevista em seu escritório em Berlim. Nenhum foi adequado, ele disse.

Uma consulta anterior, de um grupo de extrema direita chamado movimento Reichsbürger, parecia personificar os piores temores das autoridades. O grupo nega a legitimidade do Estado alemão atual; alguns de seus membros estão sendo julgados por um complô para derrubar o governo.

Esse tipo de atenção — de que a associação da propriedade com a era nazista poderia atrair um comprador indesejado — é parte da razão para o abandono da mansão.

— A história do lugar é precisamente a razão pela qual Berlim nunca entregaria este edifício a mãos privadas onde haveria o risco de que ele pudesse ser mal utilizado — disse Evers.

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O destino da mansão não é apenas um dilema logístico para a Alemanha. Ilustra um enigma maior e de longo prazo, cujas bases mudaram ao longo do tempo, dizem especialistas: se devem ou não preservar os muitos edifícios do passado odioso da Alemanha.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, a abordagem predominante era seguir em frente, ignorando a propriedade anterior, para não correr o risco de reafirmá-la, segundo Peter Longerich, historiador e autor de "Goebbels", uma biografia. O apartamento de Hitler em Munique, por exemplo, tem pouca informação detalhando sua história; há muito tempo é uma delegacia de polícia em que os oficiais ainda usam as prateleiras de madeira do próprio Hitler, disse ele.

Nos arredores do centro de Wandlitz, a floresta cresceu ao redor da casa, bloqueando a porta do cinema privado onde Goebbels exibia seus filmes de propaganda. Teias de aranha cobrem as janelas dos quartos. E partículas de poeira flutuam pelos salões arejados onde ele brindava e jantava com a liderança nazista, e onde seus seis filhos brincavam ao lado da lareira — até que ele e sua esposa envenenaram todos nos dias finais da guerra.

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A manutenção da propriedade custa 280 mil euros por ano (quase R$ 1,6 milhões) apenas para mantê-la de pé, de acordo com o Departamento de Edifícios. A restauração não seria apenas cara, mas introduziria outra questão espinhosa que atormenta os preservacionistas que devem lidar com estruturas remanescentes dos capítulos nazista e comunista do passado da Alemanha.

— Se elas parecem muito bonitas, você reestetiza seu reinado — disse Thomas Weber, professor de História e Assuntos Internacionais da Universidade de Aberdeen, na Escócia. — Mas se você as deixa de lado e, de alguma forma, destrói como funcionavam na época, as pessoas não entenderão, tampouco.

A mansão está cheia de elementos arquitetônicos que eram populares entre os líderes nazistas, como suas janelas de sala de estar que se dobram para dentro do chão — um toque também usado no próprio retiro de férias de Hitler nos Alpes da Baviera. Há um bunker nos fundos, também, só por precaução.

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Outras estruturas foram adicionadas ao longo do tempo. Por um caminho, passando por estátuas de concreto sem cabeça de amantes entrelaçados, há vários edifícios quase no estilo federal. Eles foram usados como um colégio internacional de juventude comunista desde os anos 1940 até a queda do Muro de Berlim. Subindo degraus cobertos de mato e atrás de portas grafitadas, seus interiores cavernosos abrigam alojamentos e um auditório que ecoa.

É uma parte do passado do local frequentemente eclipsada por sua herança nazista, disse Gerwin Strobl, professor de História Moderna na Universidade de Cardiff, no País de Gales, que estuda a Alemanha. Mas é também algo doloroso para os alemães.

— Na verdade, cobre duas ditaduras alemãs em sucessão. Isso também explica por que é tão difícil encontrar um uso para ela — disse Strobl. — Mas os edifícios, por si só, não são maus.

Depois de ouvir sobre a oferta de Berlim para doar a propriedade, o rabino Menachem Margolin, presidente da Associação Judaica Europeia, enviou uma carta aberta oferecendo convertê-la em um centro educacional para combater todas as formas de ódio.

— É uma mensagem importante para todos — disse Margolin. — Que até o lugar mais sombrio do mundo pode se tornar uma fonte de luz.

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Um projeto como esse é digno, disse Evers, mas o problema é o financiamento. Walter Reich, ex-diretor do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, disse que era obrigação da Alemanha ajudar a pagar. "Isso faz parte do fardo da História alemã", disse Reich em um e-mail. "O passado incontrolável da Alemanha."

À medida que o freixo e o amieiro avançam sobre a mansão, Oliver Borchert, prefeito de Wandlitz, tem, há anos, afastado o interesse de extremistas de direita, incluindo o grupo golpista Reichsbürger. O local precisa de mais do que manutenção — precisa de transformação, disse Borchert:

— Você tem que encontrar um uso que possa se opor e refletir as sombras da casa e sua história.