Cidades
O martírio de Irmã Ana: 30 anos do crime que abalou Palmeira dos Índios

No dia 16 de julho de 1995, a cidade alagoana de Palmeira dos Índios amanheceu perplexa com a notícia de um dos crimes mais impactantes de sua história recente: o assassinato da Irmã Ana, missionária holandesa da Congregação das Irmãs Missionárias Franciscanas de Santo Antônio de Pádua.
Passadas três décadas, a memória daquele episódio ainda ressoa entre fiéis, líderes religiosos e moradores dos bairros populares que conheceram e conviveram com a freira — a quem chamavam, com reverência e afeto, de “Irmã Ana dos Pobres”.
A noite do crime
Era uma noite de sábado festiva em Palmeira dos Índios. Na Praça das Casuarinas, um evento privado, prévia da última “Micaríndio” que haveria na cidade, reunia centenas de pessoas em clima de euforia. Nas proximidades, no Centro de Treinamento Pastoral Pio XII, participantes do Movimento de Treinamento de Lideranças Cristãs (TLC) tentavam dormir em seus alojamentos, antes das atividades de encerramento de seu curso anual.
Por volta das 4h30, testemunhas que haviam se afastado da festa carnavalesca para ficar a sós na Praça do Rosário, nas imediações do Alto do Cruzeiro, ouviram disparos e avistaram alguém fugindo de uma residência que ficava defronte o oitão da antiga Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, onde hoje funciona o museu Xucurus. O local da fuga era a casa da Irmã Ana.
A religiosa foi assassinada com tiros de revólver calibre .38, após surpreender os invasores. Os criminosos estavam certos de que as freiras guardavam uma quantia, destinada às obras sociais, e invadiram primeiramente o Convento das Irmãs Franciscanas, situado ao lado do Paço Episcopal, sem sucesso. Dirigiram-se então à residência da missionária, onde consumaram o latrocínio. Irmã Ana morreu ali mesmo, aos 69 anos.

Quem foi Irmã Ana Manders?
Martinna Johanna Manders (nome de batismo de Irmã Ana) nasceu em 16 de janeiro de 1926, no município de Someren, situado na província de Brabante do Norte, ao sul dos Países Baixos. Pelo sobrenome, Ana Manders veio de uma família com presença sólida na região, com registros documentais desde, pelo menos, fins do século XVIII. Aos 19 anos, ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias Franciscanas de Santo Antônio de Pádua, fundada em 17 de fevereiro de 1913, em Boerdonk, pequena aldeia daquela região, sob a orientação do Padre Gerardus van Schinjdel, com o objetivo de evangelizar através da educação, do serviço aos pobres e da presença missionária nos lugares mais necessitados. A primeira jovem a entrar na Congregação foi a Irmã Antônia van Dÿk, que seria também a primeira Superiora Geral.
Inspiradas no ideal franciscano de simplicidade e serviço, as “irmãs holandesas” expandiram sua atuação para diversos países, chegando ao Brasil entre as décadas de 1960 e 1970. Estabeleceram-se em Palmeira dos Índios a partir de 1965, a convite de Dom Otávio Barbosa Aguiar, primeiro Bispo da Diocese, integrando-se à vida pastoral diocesana e desenvolvendo importantes trabalhos sociais, especialmente nas áreas de educação, saúde, moradia e formação cristã no Sertão de Alagoas. O historiador Derllânio Terencio da Silva relata como se deu o contato entre Dom Otávio, que participava do Concílio Vaticano II, e as freiras franciscanas: “em uma viagem para Roma, [ele] soube que algumas irmãs estavam fugidas do Congo por conta da guerra civil e, através de uma conversa com a madre superiora delas, as convidou para realizar missões no Brasil. As irmãs que estavam no Congo eram Odiliana e Clementina. Após esforços, o padre de Pão de Açúcar, Heliomar Queiroz Mafra, conseguiu levar para o município alagoano as duas irmãs vindas do Congo. Estas se juntaram com irmã Qunera, irmã Joannis e irmã Redenta que estavam na Paraíba”. Nos anos 1980, no episcopado de Dom Epaminondas José de Araújo, foi iniciada a formação de moças brasileiras na própria Diocese, e as primeiras jovens sertanejo-alagoanas ingressaram na Congregação, como Irmã Lourdes Santana, Irmã Margarida dos Santos, Irmã Cícera Mendonça e Irmã Nadja Feitosa.

Aos 41 anos de idade, Irmã Ana fixou-se em Palmeira dos Índios, compondo a missão educativa e pastoral da Diocese a partir de 1967. Nas décadas seguintes, a freira atuou em bairros periféricos e vulnerabilizados, como Xucurus, Cafurna, Vila Nova, Ribeira e Alto do Cruzeiro, onde seu legado permanece na memória popular e nas instituições que carregam o nome e os valores das “irmãs holandesas”.
A professora Denize Marta, que fez o TLC e participava da Legião de Maria, guarda como relíquia um terço vermelho que ganhou de Irmã Ana por ocasião da Jornada Mariana – uma espécie de “feira de cultura católica” que ocorria todo mês de maio –, pouco menos de dois meses antes daquele dia fatídico, e relembra com carinho o legado das holandesas em sua vida: “Comecei a visitar o Xucurus, a princípio, pelos cursos disponibilizados pelas freiras: crochê, corte e costura. Consegui posteriormente um contrato para dar aula na Escola Irmã Bernadete. Recordo-me da Irmã Ana passando por lá, organizando os trabalhos, ajudando muito aquela comunidade”.
Socorro Cavalcante, indígena Xukuru-Kariri da Aldeia Cafurna de Baixo, recorda com gratidão: “Se tenho estudo hoje, eu agradeço a elas, pois era acompanhada por essas doces freiras. Elas ajudavam minha família. Irmã Marcela e Irmã Ana foram minhas mães”.
Na Paróquia da Catedral Diocesana de Nossa Senhora do Amparo, a religiosa participava ativamente da catequese litúrgica e de grupos de canto.
Conhecida por seu sotaque neerlandês, seu indefectível hábito claro e o véu marrom, a freira ficou célebre por suas expressões peculiares — como o divertido “Vamos no minha Fusca” — e por seu senso de disciplina com os jovens da vizinhança. A cabeleireira Rita de Cássia Lima, que frequentava a então Capela da Divina Pastora, em Palmeira de Fora, por exemplo, nos conta o seguinte: “Me lembro sempre dela, passando em seu fusquinha... Tinha traços fortes, e sempre exigia silêncio nas missas! Era um tempo em que o povo sabia assistir à missa, né?”. Como se vê, Irmã Ana era querida, mas também temida por seu rigor e sua firmeza de caráter. Ao ser morta, tornou-se símbolo e referência de compromisso cristão e dedicação máxima aos pobres.
Repercussão e julgamento
O assassinato repercutiu nacional e internacionalmente, mobilizou os corpos diplomáticos do Brasil e da Holanda, e gerou profunda comoção. A primeira pessoa a chegar ao local foi Irmã Lourdes Santana. Depois vieram o Padre Odilon Amador, pároco da Catedral, e Cícera Guedes, diretora do Ginásio Sagrada Família. Nas primeiras horas da manhã, uma multidão já se formava, inconformada, nas imediações do local do crime.
O velório, realizado na Catedral Diocesana, foi marcado por uma cena inusitada, interpretada misticamente pelos presentes. Segundo relatos, quando os assassinos — que compareceram ao funeral e ficaram dentre os entes queridos da freira — se aproximavam do caixão, o corpo da religiosa sangrava. “O sangue inocente clama por justiça!”, gritou Zezinho do Posto, ex-vereador e liderança comunitária, organizador do cortejo fúnebre, que saiu da igreja às 18 horas e reuniu, segundo a Polícia Militar, mais de cinco mil pessoas, transformando-se em um dos maiores protestos populares da história do município.

“Com certeza, foi um fato inesquecível e triste que vivi”, conta Ana Maria, professora santanense, ex-religiosa da Congregação. “Aquele crime tão cruel nunca saiu da minha memória. Na época, eu era noviça das Irmãs Franciscanas. Estava de férias em Santana do Ipanema e, por incrível que pareça, um dos assassinos foi me buscar na casa dos meus pais, junto com a Irmã Leôncia — outra holandesa que morava lá em Santana. Quando chegamos a Palmeira, lembro bem que a Irmã Leôncia repetia, com firmeza: ‘Eu sei quem matou. Eu sinto. Na presença desse rapaz... Foi ele’. Foi uma viagem angustiante. Ela dizia que se sentia mal só de ele se aproximar do caixão. ‘Foi ele’, ela repetia. Antes mesmo de enterrarmos nossa querida Irmã Ana, os suspeitos já estavam presos, graças ao testemunho de um casal e a outras evidências. Foi tudo muito triste. Minha vida seguiu por outros caminhos depois disso, mas esse dia... Esse dia nunca saiu da minha memória”.
Olga Chagas Costa, que também foi da Congregação, viveu o episódio da seguinte maneira: “Eu e outras três brasileiras morávamos na cidade de Major Izidoro, no sertão alagoano. Quando soubemos da fatídica notícia, nos dirigimos a Palmeira dos Índios com o coração despedaçado, sem conseguir entender quem teria coragem de cometer tamanha atrocidade contra uma religiosa. Ao chegarmos na rodoviária, fomos recepcionadas por um rapaz bastante prestativo, que se ofereceu para nos levar ao convento. Ele estava com o fusquinha da congregação. Eu nunca tinha tido contato pessoal com ele. Ele demonstrava estar muito abalado com o ocorrido e fazia questão de dizer que Irmã Ana era como uma mãe para ele. Repetia: ‘Quem fez isso com ela vai ter que pagar!’ — e chorava copiosamente. Fiquei comovida com a dor daquele rapaz e tentei confortá-lo... Mal sabia eu que estava diante de um assassino frio e impiedoso, que só se revelaria um dia depois do sepultamento”.
Luiz Tenório, que era membro do Coral Palmeirense Padre José Maurício Nunes Garcia, regido pelo Maestro Luiz Neves, relata como a notícia o impactou profundamente: “Foi um fato horrível, que deixou todos nós, palmeirenses, profundamente consternados e abalados. Eu, particularmente, fui acometido por uma febre naquele momento, mas não a ponto de me impedir de prestar a ela um último adeus: nosso coral, que ela tanto admirava e várias vezes aplaudiu após entoar a Ave Maria de Arcadelt, cantou em sua missa de corpo presente”.

Os jovens que estavam terminando o curso do TLC receberam a notícia em seu local de retiro, na manhã do crime. Havia participantes de várias partes da Diocese, dentre eles Josenildo Gomes de França, atual vice-prefeito de Igaci. Além do choque, ele recorda o pânico que se estabeleceu quando surgiram comentários de que os assassinos estariam escondidos nas salas da antiga “Santa Clara”, casa ligada à Congregação, atrás do auditório do Centro de Treinamento, onde acontecia a formação. “Nós, que morávamos fora, não tínhamos conhecimento de quem era a irmã, mas outras pessoas tinham uma relação direta com ela. Alguns se emocionaram muito... À noite, quando saímos para a Catedral, não se falava outra coisa em Palmeira dos Índios”. O bibliotecário Darllan Lima recorda os momentos finais do curso: “Saímos em direção à Catedral, para a missa de encerramento do TLC, e estava havendo um protesto, bem à frente. Muito triste”.
A Secretaria de Segurança Pública de Alagoas, então comandada pelo coronel Amaral, reforçou o policiamento militar na cidade com o Tático Integrado de Grupos de Resgate Especiais – TIGRE. Integrantes do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em contato com o hoje deputado federal Paulo Fernando dos Santos (Paulão), então presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT/AL), reforçaram que a Irmã trabalhava diretamente com os sem-teto de Palmeira, mas o delegado Antônio Carlos de Azevedo Lessa, então titular da 6.ª Delegacia Regional de Palmeira dos Índios, descartou que a execução pudesse estar relacionada alguma questão político-fundiária, e investigou o caso como latrocínio. Quatro suspeitos – três adultos e um menor de idade –, foram detidos dois dias após o crime hediondo e, no dia 20, um dos latrocidas foi oficialmente apresentado pela polícia como participante do homicídio.
Os irmãos Ramilson Mendes, Roberto Mendes (que efetuou os disparos) e o comparsa José Ferreira (Ferreirinha), apontado como mentor do crime, foram julgados e condenados. O caso, embora tenha tido justiça formal, ficou marcado como tragédia adormecida: seus atores principais recobraram a liberdade, e a história se diluiu na memória comum, mantendo-se viva apenas pelas lembranças de moradores.

O legado das irmãs holandesas
O assassinato de Irmã Ana marcou simbolicamente o fim de um ciclo missionário iniciado nos anos 1960, quando a Congregação enviou diversas religiosas para atuar no Brasil. Irmã Bernadete, Irmã Marcela Sonnemans e Irmã Helena Vredegoor são algumas das missionárias que, como Irmã Ana, desempenharam papéis-chave na educação e na pastoral social da Diocese de Palmeira dos Índios.
A lembrança delas segue viva em escolas e ruas que lhes prestam homenagem: a Escola Municipal Irmã Bernadete (no Conjunto Dom Epaminondas, Bairro Xucurus), a Escola Marcella Sonnemans (baseada na Cafurna) e as três ruas da Vila das Irmãs (em Palmeira de Fora). Irmã Ana está sepultada no Cemitério São Gonçalo, onde, a cada Dia de Finados, muitos populares acendem velas e fazem preces, num gesto de gratidão e súplica por intercessão espiritual.

Em 2022, a sede da Congregação foi transferida da Holanda para o Brasil, precisamente para Palmeira dos Índios, tendo hoje, como Superiora Geral, a Irmã Edineuza de Oliveira Araújo. Seu carisma, inspirado na pobreza, simplicidade e solidariedade franciscanas, continua presente nas pastorais da diocese e comunidades locais.
O sinal do martírio
O assassinato de Irmã Ana Manders, em 1995, não foi apenas um crime bárbaro que abalou a cidade de Palmeira dos Índios, mas um acontecimento de profunda densidade simbólica e espiritual para a comunidade católica palmeirense. Missionária holandesa, a Irmã Ana dedicou sua vida aos pobres, à educação e à evangelização na Diocese. Sua trajetória, marcada pela simplicidade franciscana e pelo compromisso incondicional com os mais vulneráveis, culminou numa morte violenta que, para muitos, reveste-se de sentido martirial.
Embora sua morte tenha sido juridicamente classificada como latrocínio, a memória coletiva e o sentimento popular palmeirenses a reconhecem como um exemplo de martírio contemporâneo: alguém que morreu porque viveu radicalmente o evangelho da solidariedade. Como escreveu a Irmã Marlene Burgers, então Coordenadora Provincial da Congregação, “Irmã Ana, que consagrou sua vida ao serviço do Reino, de modo especial ‘aos mais pobres dos pobres’, derramou seu sangue para defender os bens que a estes pertenciam. Esperamos que a América Latina, regada por seu sangue, torne-se fecunda e um dia veja brotar a Justiça de Deus diante do clamor do povo empobrecido”.

Trinta anos após o ocorrido, a memória de Irmã Ana resiste ao esquecimento, ressoando nos testemunhos dos fiéis, nos espaços que levam seu nome, nas práticas pastorais que seguem seu exemplo e, sobretudo, na consciência de que sua vida foi uma oferenda silenciosa e coerente ao Reino de Deus. Seu sangue derramado na periferia sertaneja é, para a fé cristã, semente de esperança e justiça. O martírio de Irmã Ana, nesse sentido, ultrapassa os limites da tragédia e se inscreve como legado espiritual e social de resistência, fé encarnada e serviço ao próximo.
* Cosme Rogério Ferreira é graduado em Filosofia, Especialista em História de Alagoas, Mestre em Sociologia e Doutor em Letras e Linguística. É professor do Instituto Federal de Alagoas – Ifal.
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