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Biografia de Gilberto Braga traz temas tabus e explica sucesso de um dos maiores autores de novela da TV
Escrita por Artur Xexéo e Mauricio Stycer, obra tem descrições certeiras de figuras bem cariocas, algumas discussões morais e dilemas de sobra

Como numa novela de Gilberto Braga, a biografia de Gilberto Braga tem descrições certeiras de figuras bem cariocas, temas tabus para provocar o conservadorismo, algumas discussões morais e dilemas de sobra. Tem até mesmo um surpreendente “quem matou?” da vida real — cuja vítima e o assassino serão preservados neste texto, tal como faria o protagonista do livro “Gilberto Braga — O Balzac da Globo”, que a editora Intrínseca lança este mês. O criador de “Vale tudo” não aceitaria de maneira alguma que se estragasse a surpresa.
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De autoria de Artur Xexéo e MauricioStycer, o livro começou a ser produzido em 2019, mas teve alguns reveses, também bem típicos de uma novela. Xexéo morreu em 27 de junho de 2021, deixando órfãos os muitíssimos fãs das colunas que publicava no GLOBO, dos comentários que fazia na TV e dos livros e espetáculos teatrais que escrevia. Três semanas depois, o próprio Gilberto Braga telefonou para Stycer, contou sobre a biografia e perguntou se ele não gostaria de dar continuidade ao trabalho de Xexéo. Conversa vai, conversa vem, ele topou. Só que aí apareceu o segundo contratempo: em 26 de outubro daquele mesmo 2021, Gilberto Braga morreu, aos 75 anos, em decorrência de uma perfuração no esôfago.
Xexéo havia deixado 14 horas de entrevistas gravadas com Gilberto Braga, além de pesquisa e tantas outras conversas com amigos, parentes e colaboradores do autor. Stycer, então, começou de onde Xexéo parou. Ele se debruçou sobre esse material, fez mais dezenas de entrevistas, teve acesso aos arquivos do biografado e passou a escrever.
— Eu tinha uma relação meio de aluno com o Xexéo, e em vários momentos pensava se ele ia gostar ou não que incluísse alguma informação — lembra Stycer. — Às vezes eu ligava para o Paulo(Paulo Severo, com quem Xexéo foi casado por 30 anos)e perguntava sobre umas coisas mais de fofoca: “Você acha que o Xexéo colocaria isso no livro?” E, quando o Paulo disse que não, eu não coloquei.
Da crítica de teatro à tv
O resultado do trabalho da dupla é uma obra que equilibra aspectos pessoais e profissionais do biografado, e mostra como um lado influenciava o outro.
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O livro começa no início do século XX para contar a história dos avós de Gilberto e vai até Vila Isabel em 1º de novembro de 1945 para contextualizar seu nascimento numa família de um pai escrivão de polícia e de uma mãe dona de casa. Depois, segue para Tijuca e Copacabana, bairros para onde Gilberto migrou com os pais e onde desenvolveu sua paixão por cinema, referência habitual em suas novelas. Naturalmente, há um bom espaço dedicado a seu relacionamento de quase 50 anos com o decorador Edgar Moura Brasil,iniciado em 1972 e que atravessou tempos de preconceitos bem maiores do que hoje.
Já pelo lado profissional, Gilberto teve que trabalhar ainda quando estudava no Pedro II, depois que o pai morreu, em 1963. Seu primeiro emprego foi numa loja de decoração. Depois foi contratado num banco, deu aulas de francês, entrou no curso de Letras da PUC (mas não concluiu) e se tornou crítico de teatro, outro de seus grandes interesses ao lado de cinema. No início dos anos 1970 ganhou o posto de crítico titular do GLOBO, assinando como Gilberto Tumscitz, o sobrenome paterno.
—O Gilberto mantinha um acervo de recortes de jornal sobre ele — conta Stycer. — São 54 volumes, organizados cronologicamente, de 1969 até os dias de hoje, que a secretária dele continua atualizando. O Edgar deixou eu ler esse material, então aluguei um Airbnb no Rio e passei duas semanas lendo. E foi interessante porque trouxe à tona muitas miudezas que não apareceram nas entrevistas.
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A televisão, como conta a biografia, entrou na vida de Gilberto porque ele queria um salário melhor. Em 1972, o então crítico esbarrou com Daniel Filho num clube do Leblon e se ofereceu para escrever para o programa “Caso especial”, que a TV Globo havia estreado um ano antes. Daniel era responsável pela área de teledramaturgia e deu força para Gilberto.
Em dezembro daquele ano, estreou a adaptação de “Dama das Camélias”, do francês Alexandre Dumas. Nos créditos, a direção era de Walter Avancini, a adaptação para a TV era de Oduvaldo Vianna Filho, a protagonista era Glória Menezes e a autoria do texto era de Gilberto Tumscitz — apenas em 1974 ele decidiu adotar o “Braga”, que era o sobrenome materno, porque não aguentava mais que as pessoas errassem tanto a pronúncia e a grafia do “Tumscitz”.
A partir do sucesso de “Dama das Camélias”, Gilberto voou. Assim como o escritor francês do século XIX Honoré de Balzac fez com Paris, o autor de novelas carioca foi um brilhante observador da elite e da burguesia do Rio e levava o que via para a TV. Além de “Vale tudo” (1988, escrita com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères), para muitos a melhor novela da História, seu extenso currículo inclui “Escrava Isaura” (1976), “Dancin’ Days” (1978), “Anos dourados” (1986), “O dono do mundo” (1991), “Anos rebeldes” (1992), “Celebridade” (2003), “Paraíso tropical” (2007, com Ricardo Linhares) e “Babilônia” (2015, sua última novela, com Linhares e João Ximenes Braga).
Cara 'de mais louca' matou Odete Roitman
Em paralelo à lembrança da criação de cada uma das obras de Gilberto, o livro também faz uma excelente descrição de como funciona a indústria de produção de novelas, sobretudo entre os anos 1970 e 1990. Há muitos relatos de conversas e conselhos do mesmo Daniel Filho, que se tornou amigo e parceiro; de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, durante décadas um dos principais executivos da Globo; e também de Janete Claire Lauro César Muniz, autores mais experientes que “apadrinharam” Gilberto. Para Stycer, esses quatro foram as figuras mais importantes na ascensão da carreira de seu biografado.
— Fazendo o livro, vi claramente que uma novela é uma obra aberta, cercada de gente que acompanha as pesquisas com o público e dá sugestões. Se o Boni ou o Daniel falassem alguma coisa, podia alterar um novela — diz Stycer.
Uma dessas mudanças veio de um conselho de Janete. No roteiro de “Dancin’ Days”, a personagem Áurea, vivida pela atriz Yara Amaral, cometeria suicídio. Janete ligou para Gilberto e falou: “A espectadora se identifica com a Áurea. Se você fizer ela se suicidar, vai ficar muito baixo-astral”. E Áurea teve um final feliz.
Em “Vale tudo”, o mistério sobre a morte da vilã das vilãs Odete Roitman, interpretada por Beatriz Segall, mobilizou o Brasil. A cena que revela quem a matou só foi gravada no dia do último capítulo, 6 de janeiro de 1989. O diretor Dennis Carvalho, outro parceiro contumaz do autor, havia ligado três dias antes para Gilberto, perguntando quem seria o assassino. Gilberto respondeu: “Dennis, quem é a mulher que tem a cara de mais louca do elenco?” E assim foi, a personagem Leila, vivida por Cássia Kis, matou Odete Roitman.
Desfechos nem sempre suaves
Em muitos casos, Gilberto soube retratar um país em mudanças, sem medo de lidar com polêmicas. Mas nem sempre o desfecho era suave.
O beijo entre o casal vivido por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, logo no primeiro capítulo de “Babilônia”, gerou uma reação negativa gigante, com campanhas contra a novela e manifestações de homofobia e etarismo.
Em “O dono do mundo”, o público também reagiu mal à ideia de colocar Antônio Fagundes como Felipe Barreto, milionário arrogante que apostava com um amigo que iria desvirginar a noiva de um funcionário. Ela era Marcia (Malu Mader), e a aposta foi ganha já no quarto capítulo. A ousadia afastou o público. Para piorar, o SBT havia estreado no mesmo dia o folhetim mexicano “Carrossel” e colocou no ar uma propaganda que dizia: “A única coisa que a nossa professorinha dá é audiência. Viu, Felipe?”
Por outro lado, a polêmica da minissérie “Anos rebeldes” foi positiva para audiência e talvez para o país. A obra acompanhou um grupo de jovens idealistas na ditadura militar. Na primeira semana de exibição, o Exército divulgou uma nota que falava que momentos “que tiveram sua origem na Revolução Democrática de 1964 vêm sendo reescritos segundo ótica deturpada”. Era julho de 1992, e já soava como piada falar em “revolução democrática de 1964”, ainda mais com o país prestes a explodir contra o governo Collor. Para muitos, os “caras-pintadas” que pediam impeachment foram influenciadas por “Anos rebeldes”, mais uma das muitas vezes em que a obra de Gilberto Braga foi para além da TV.
Lançamento: "Gilberto Braga — O Balzac da Globo". Autores: Artur Xexéo e Mauricio Stycer. Editora: Intrínseca. Páginas: 349. Preço: R$ 64,90.
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