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Conheça o gagauz, idioma que pode morrer com o avanço do nacionalismo na Moldávia, ex-república soviética

Política linguística hegemônica adotada após o fim da URSS fez idiomas de minorias étnicas perderem espaço como efeito das disputas exacerbadas a partir da fragmentação do bloco

Agência O Globo - 05/10/2023
Conheça o gagauz, idioma que pode morrer com o avanço do nacionalismo na Moldávia, ex-república soviética

Ele publicou coleções de poesia, escreveu mais de 20 livros, além de peças de teatro, traduziu obras de gigantes da literatura estrangeira, como Molière, e é considerado um mestre em seu idioma nativo. Sua produção notável, no entanto, está longe de ser proporcional ao tamanho do seu público. Até mesmo seus filhos não conseguem entender uma palavra do que ele escreveu.

Isso porque o autor Todur Zanet escreve em gagauz, uma língua turca misteriosa usada por tão poucas pessoas que, segundo o escritor, o principal valor de sua produção literária provavelmente será para futuros acadêmicos interessados em línguas mortas.

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— Pelo menos eles terão algo interessante para estudar — disse ele. — Nosso idioma está morrendo e, dentro de duas ou três gerações, estará morto — disse Zanet, 65 anos, em uma entrevista em Comrat, a capital de sua região natal, Gagauzia, um enclave étnico autônomo na antiga república soviética da Moldávia.

Outros são menos pessimistas e observam que, embora seja usado rotineiramente em casa e no trabalho por apenas algumas milhares de pessoas, o gagauz é semelhante ao turco e a várias outras línguas turcas amplamente usadas em partes da antiga União Soviética, como o Azerbaijão e a Ásia Central.

O idioma gagauz pode ser pequeno e estar encolhendo, disse Gullu Karanfil, linguista e poeta que ensina gagauz e turco na Universidade Estadual de Comrat, mas "faz parte de uma grande família linguística" com mais de 300 milhões de pessoas, mais do que o número de falantes de russo em todo o mundo.

— Ele não morrerá — insistiu ela.

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A Turquia, a Rússia e os Estados Unidos financiam pequenos centros na universidade para promover suas próprias línguas e, por conseguinte, sua influência — uma rivalidade enraizada na política linguística pós-soviética, um legado particularmente nocivo do governo anterior de Moscou.

Ignat Cazmali, ex-oficial militar soviético e historiador de Gagauzia, fundou um museu em seu vilarejo natal de Avdarma, a leste de Comrat, para tentar desvendar a jornada, muitas vezes dolorosa, do assentamento durante os períodos de domínio russo, romeno, soviético e agora moldavo, cada qual com seu próprio idioma dominante.

O comunismo soviético, disse ele, "nunca foi uma questão de internacionalismo, mas de etnocracia", um sistema projetado para garantir o domínio da etnia russa e de seu idioma, ao mesmo tempo em que colocava uma infinidade de grupos étnicos e idiomas menores uns contra os outros.

O resultado foi uma boneca matriosca de ressentimentos linguísticos e étnicos que se reforçavam mutuamente. A União Soviética tinha 15 repúblicas diferentes com base étnica, sendo que a maior delas era a Rússia. Quando ela se desfez, bonecas menores como Moldávia, Ucrânia e Geórgia — e as minorias que elas, por sua vez, continham, como os gagauz — se espalharam e clamaram pela primazia dos seus próprios idiomas.

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Sob pressão de enormes protestos de rua que afirmavam a identidade da maioria de língua romena da Moldávia, a legislatura comunista da república soviética, de maioria russa, declarou em 1989 o "moldavo" — ou seja, o romeno — a "língua do Estado" e relegou o russo a uma "língua de comunicação interétnica". Dois anos depois, a Moldávia declarou independência.

A ascensão do nacionalismo moldavo alarmou grupos minoritários como os gagauz, que falavam principalmente russo e temiam ser vítimas da política identitária dos falantes de romeno da Moldávia. Os russos étnicos na Ucrânia tinham o mesmo receio de perder para os recém-empoderados falantes de ucraniano.

Nessa época, poucos gagaúzes falavam sua própria língua nativa. Ela havia sido ensinada nas escolas locais por um breve período a partir de 1958, mas foi abandonada quando Moscou acelerou a imposição do russo. Mas o medo do nacionalismo crescente entre a maioria moldava desencadeou um esforço paralelo dos intelectuais gagaúzos para reviver e afirmar seu próprio idioma.

Todur Marinoglu, um ativista do idioma gagaúz na década de 1980, lembra que isso atraiu imediatamente a atenção da KGB, que se infiltrou no movimento para afastar os ativistas genuinamente interessados no idioma local e promover aqueles que queriam manter a Moldávia na União Soviética.

Marinoglu foi colocado sob vigilância e levado para interrogatório sob suspeita de ser um militante "pan-turco" em conluio com a Turquia, membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Ele insistiu que sua única preocupação real era reviver sua língua nativa.

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Percebendo que a União Soviética estava se desintegrando, as elites comunistas locais da Gagauzia aderiram ao movimento de revitalização do idioma gagauz, pelo menos por um breve período, embora muitos não o falassem. Elas apoiaram a criação, em 1988, do Ana Sozu, que se traduz livremente como Língua Materna, o primeiro jornal da região totalmente em gagauz. Zanet tornou-se seu editor.

Um ano depois, eles declararam Gagauzia um Estado independente, aparentemente para proteger o idioma gagauz, mas principalmente para proteger sua própria posição contra os nacionalistas moldavos de língua romena.

O estado separatista se desfez em 1994, depois que a Moldávia concordou em conceder autonomia à região. Desde então, essa entidade tem sido dominada por políticos que falam russo e têm pouco ou nenhum conhecimento do idioma gagauz ou romeno, apesar de uma regulamentação legal que permite que a Moldávia fale russo.

— Nunca houve nenhum documento oficial escrito em Gagauz, portanto, nada mudou. Tudo está em russo. Esse é o túmulo de nosso próprio idioma — disse Marinoglu.

Das 45 escolas secundárias da região, 42 ensinam em russo, duas em romeno e uma em ambos. Elas oferecem aulas de gagauz como segunda língua, mas muitos pais querem que seus filhos se concentrem em dominar o russo, um indicador de educação e status social.

Os esforços para manter o idioma vivo garantiram o que deveria ter sido um grande impulso em 2018 quando, após meses de debates acalorados, o Parlamento regional aprovou uma nova lei para "ampliar a esfera do uso do gagaúz", que incluía a exigência de que os funcionários públicos soubessem falar o idioma.

Elena Karamit, co-patrocinadora da legislação e diretora do museu de Cazmali em Avdarma, disse que as novas regras foram aplicadas de forma irregular.

— Se as pessoas no topo falassem gagaúz e começassem a usá-lo em público, elas dariam um exemplo. Mas todos eles falam russo — disse ela em uma entrevista, conduzida em russo.

Zanet tem mantido vivo seu jornal de pequena circulação graças ao apoio da agência de desenvolvimento internacional da Turquia, mas ainda é pessimista quanto à sobrevivência de sua língua nativa.

— Não há futuro para os idiomas pequenos — disse ele. — O futuro pertence aos grandes idiomas: inglês, russo, chinês e turco.