Internacional
'Mensagem preocupante à comunidade internacional', afirma cientista político sobre queda de presidente da Câmara
Queda de braço interna que culminou na destituição histórica do presidente da Câmara dos Deputados, Kevin McCarthy, teve início após discordâncias sobre ajuda à Ucrânia e colaboração com democratas
Para dois observadores privilegiados e atentos da política americana, a derrubada inédita, na terça-feira, do presidente da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, Kevin McCarthy, após articulação de congressistas extremistas de seu próprio partido, tem significados e dimensões que ultrapassam as fronteiras da maior potência do planeta. Os cientistas políticos Jonathan K. Hanson, professor emérito da cadeira Gerald Ford na Universidade de Michigan, e David Schultz, especialista em legislação eleitoral e ética da Universidade Hamline, de Minnesota, veem na Câmara dos Deputados acéfala um retrato preocupante da crise da democracia americana.
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Hanson, que foi assessor parlamentar e trabalhou com políticos democratas e republicanos em tempos menos polarizados, detecta uma “guerra civil” pelo controle do partido direitista, com consequências imprevisíveis. O ponto principal de discórdia dos extremistas foi a ajuda à Ucrânia e a colaboração de McCarthy para evitar a paralisação do governo Biden. Já Schultz concorda que o terremoto que sacudiu Washington causou mais fraturas aos republicanos, o que pode ajudar os democratas em nível nacional e local nos pleitos de 2024. Mas ele também aponta que o cálculo democrata — de não dar a McCarthy os votos suficientes para ele seguir no comando da Câmara contra o desafio montado pelos extremistas — feriu a democracia americana e mandou mensagem preocupante à comunidade internacional de intolerância e incapacidade de se chegar a consensos, premissa básica do exercício político.
Dois candidatos no páreo
Baseados em estados da América Profunda, os acadêmicos não creem que Donald Trump, como chegaram a defender grupos trumpistas, se apresentará — o que é constitucionalmente possível — como possível substituto de McCarthy, em busca do papel de líder capaz de unir um Partido Republicano tão dividido. Na quarta, dois candidatos já se apresentaram para o posto. Os deputados Steve Scalise, da Louisiana, e Jim Jordan, de Ohio, este último um aliado muito próximo de Trump, começaram a cortejar os rebeldes de extrema direita do partido e iniciaram a campanha.
Confira abaixo a conversa com o professor na Universidade Hamline, David Schultz. A entrevista de Jonathan K. Hanson, professor emérito na Universidade de Michigan, ao GLOBO está disponível aqui.
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O quão chocante foi a derrubada inédita do presidente da Câmara?
O que aconteceu ontem foi, sim, chocante, mas não necessariamente surpreendente. Foi um dos resultados prováveis de movimentos políticos iniciados anos atrás, alargados pelo trumpismo. Quando Kevin McCarthy assumiu o comando da Câmara dos Deputados em novembro passado, ele o fez com uma margem muito estreita e ficou refém dos radicais. A maioria republicana, que já era apertada, ficou ainda mais frágil. E quando ele tentou negociar com os democratas em temas que, historicamente, um chefe de Poder jamais poderia negligenciar, como manter o governo funcionando, financiando-o, os radicais apostaram, de forma perigosa, em esticar a corda. Claro, do outro lado, para ajudá-lo, não estavam os democratas, cansados de engolirem goela abaixo acordos propostos, mas jamais cumpridos, por McCartthy, e sua defesa do impeachment do presidente Joe Biden.
E os democratas tomaram a decisão correta?
Foi, inegavelmente, uma vitória política. Eles conseguiram, mesmo sem a maioria, mostrar unidade e ajudar a derrubar o único republicano que comandava uma instância de Poder no governo federal. Não é pouco. Por outro lado, sem a ação deles, a Câmara dos Deputados não estaria no triste estado de desordem absoluta hoje. O cálculo dos democratas foi o da vantagem política de se apresentar dois modelos bem distintos de se tratar a coisa pública. Modelos que serão usados não só na disputa presidencial, mas nos distritos, nas disputas locais. Não levaram em conta, infelizmente, os danos causados à democracia. Foi uma jogada política, não se pesou o tamanho do vexame.
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Que afeta não apenas os republicanos…
Afeta a democracia como um todo. Ameaça-se o funcionamento do governo de forma clara e projeta-se uma imagem disfuncional nos EUA globalmente. O Partido Democrata fez um movimento político esperto do ponto de vista partidário, mas irresponsável na esfera democrática.
Tudo isso não sinaliza também a crise do modelo bipartidário da democracia americana?
Sem dúvida. Talvez seja, inclusive, o sinal mais claro que já tivemos. Pesquisas de opinião mostram que, hoje, os cidadãos americanos registram os menores índices históricos de aprovação aos dois lados. Há estudos que estimam em até 40% os eleitores interessados em outros caminhos. Mas é que o controle financeiro do mecanismo eleitoral e a força de grupos de interesse muito poderosos tornam quase impossível a emergência de terceiras vias. É parte importante do problema refletido no que se viu na terça-feira em Washington e nem republicanos nem democratas facilitarão a mudança do processo.
E o que acontecerá agora? Há conversas sobre Trump se apresentar como candidato ao comando da Câmara dos Deputados, espécie de cola a unir o Partido Republicano…
Não creio. Ele não é essa força de união, e, mais importante, não tem votos suficientes na Casa. O ineditismo histórico de cortar a cabeça de um dos chefes do Poder federal pode ter consequências enormes e além das eleições de novembro e da realidade americana. Seu simbolismo manda uma mensagem muito preocupante à comunidade internacional.
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