Internacional

'Há uma guerra civil hoje no Partido Republicano', avalia professor emérito da Universidade de Michigan

Queda de braço interna que culminou na destituição histórica do presidente da Câmara dos Deputados, Kevin McCarthy, teve início após discordâncias sobre ajuda à Ucrânia e colaboração com democratas

Agência O Globo - 05/10/2023
'Há uma guerra civil hoje no Partido Republicano', avalia professor emérito da Universidade de Michigan

Para dois observadores privilegiados e atentos da política americana, a derrubada inédita, na terça-feira, do presidente da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, Kevin McCarthy, após articulação de congressistas extremistas de seu próprio partido, tem significados e dimensões que ultrapassam as fronteiras da maior potência do planeta. Os cientistas políticos Jonathan K. Hanson, professor emérito da cadeira Gerald Ford na Universidade de Michigan, e David Schultz, especialista em legislação eleitoral e ética da Universidade Hamline, de Minnesota, veem na Câmara dos Deputados acéfala um retrato preocupante da crise da democracia americana.

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Hanson, que foi assessor parlamentar e trabalhou com políticos democratas e republicanos em tempos menos polarizados, detecta uma “guerra civil” pelo controle do partido direitista, com consequências imprevisíveis. O ponto principal de discórdia dos extremistas foi a ajuda à Ucrânia e a colaboração de McCarthy para evitar a paralisação do governo Biden. Já Schultz concorda que o terremoto que sacudiu Washington causou mais fraturas aos republicanos, o que pode ajudar os democratas em nível nacional e local nos pleitos de 2024. Mas ele também aponta que o cálculo democrata — de não dar a McCarthy os votos suficientes para ele seguir no comando da Câmara contra o desafio montado pelos extremistas — feriu a democracia americana e mandou mensagem preocupante à comunidade internacional de intolerância e incapacidade de se chegar a consensos, premissa básica do exercício político.

Dois candidatos no páreo

Baseados em estados da América Profunda, os acadêmicos não creem que Donald Trump, como chegaram a defender grupos trumpistas, se apresentará — o que é constitucionalmente possível — como possível substituto de McCarthy, em busca do papel de líder capaz de unir um Partido Republicano tão dividido. Na quarta, dois candidatos já se apresentaram para o posto. Os deputados Steve Scalise, da Louisiana, e Jim Jordan, de Ohio, este último um aliado muito próximo de Trump, começaram a cortejar os rebeldes de extrema direita do partido e iniciaram a campanha.

Confira abaixo a conversa com Jonathan K. Hanson, professor emérito na Universidade de Michigan. A entrevista de David Schultz, especialista em legislação eleitoral e ética da Universidade Hamline, ao GLOBO está disponível aqui.

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O senhor trabalhou como assessor parlamentar no Congresso dos EUA. Imaginou uma dia ver a Câmara dos Deputados acéfala?

Jamais. Minha cabeça quase explodiu. Um presidente da Câmara perder sua posição não por um escândalo ou mudança do partido no comando da Casa, mas pela incapacidade de se chegar a um consenso interno é inédito e chocante para a democracia americana. O que aconteceu também é o raio-x de um Partido Republicano caótico como nunca antes em sua longa história.

De que modo?

Há uma guerra civil hoje dentro do Partido Republicano. Há os trumpistas, uma outra extrema direita radical não necessariamente 100% com o ex-presidente, e ainda o antigo e cada vez menor grupo de conservadores clássicos. O que se viu na terça-feira na Câmara dos Deputados foi uma lente de aumento sobre o que já acontece em níveis estadual, municipal e distrital país afora. O Partido Republicano está ingovernável internamente e, paradoxalmente, parece apostar de novo numa plataforma antigoverno para as eleições gerais do ano que vem, especialmente se confirmado o favoritismo do ex-presidente Donald Trump nas primárias. O que se viu na terça foi algo muito sério. Foi uma prévia do retorno, no caso da vitória de Trump, da loucura às principais esferas do poder. Se você é incapaz de comandar a Câmara dos Deputados, por que faria diferente na Casa Branca?

Mas que facção sai ganhando com o fracasso de McCarthy?

Ainda é difícil cravar. Vai depender muito de quem conseguir reunir 218 votos e ser ungido nas próximas semanas o novo presidente da Câmara. Não será fácil. McCarthy precisou passar por 15 votações até firmar os acordos necessários e ser confirmado. E durou apenas nove meses. Quem vai conseguir trazer os extremistas para fazerem de fato parte da bancada republicana? Não há de ser, creio, um moderado. A única possibilidade seriam retaliações tão fortes que segurassem a onda dos radicais. Mas quem disse que nos distritos onde irão disputar suas reeleições no ano que vem, esses deputados não serão vistos como heróis locais? Nesta quarta-feira, alguns caciques republicanos falaram pela primeira vez em expulsão do partido de quem não votar no próximo ungido pela cúpula, mas não há comando crível no partido hoje. Pense que Donald Trump é hoje acusado, em quatro processos, por 91 crimes. E mesmo assim segue à frente nas [pesquisas para as] primárias. Acho que há um aspecto eleitoral que não podemos esquecer. O Partido Republicano ainda não sentiu o suficiente nas urnas o custo de defender o desgoverno.

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Os democratas, se quisessem, poderiam ter mantido McCarthy no comando. Foi uma estratégia correta?

O que eles acreditam terem feito foi mostrar que os republicanos, hoje, não têm condição de comandar a Câmara dos Deputados e, por conseguinte, a Casa Branca. Baterão nessa tecla nos próximos 12 meses, esse é o cálculo político. Que foi maior do que qualquer princípio de defesa da democracia americana.

O episódio de terça favoreceu mais Biden do que Trump?

Sim. Até novembro, o discurso da estabilidade, ainda que maçante, contra o caos, historicamente algo que o velho Partido Republicano sempre combateu, aliás, pode ajudar os democratas.