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Honduras, o país onde o método Bukele de combate às gangues fracassou

Presidente Xiomara Castro decretou estado de emergência inspirado em El Salvador há 10 meses. Assassinatos diminuíram, mas poder das gangues continua

Agência O Globo - 04/10/2023
Honduras, o país onde o método Bukele de combate às gangues fracassou

Eram quase 9h do dia 20 de junho e 46 detentas estavam sendo assassinadas dentro da prisão de Támara, em Honduras, no pior massacre da História em uma prisão feminina. O ataque, com fuzis, facões e gasolina, ocorreu pelas mãos de uma gangue, em um país que estava em estado de emergência havia meses. Foi o golpe definitivo para que o governo da presidente Xiomara Castro, pressionada pelas críticas à insegurança e pela pressão das elites empresariais, tomasse novo rumo.

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Ninguém em Honduras acredita que o massacre de Támara tenha sido uma coincidência. Obrigou Castro a dar uma reviravolta no regime de emergência: demitiu o ministro da Segurança e mais uma dezena de funcionários, reverteu uma das primeiras medidas que tinha tomado ao entrar no Executivo e devolveu o controle das prisões aos militares, anunciou a construção de uma prisão de segurança máxima em uma ilha para isolar completamente membros de gangues e publicou no Twitter imagens de prisioneiros sendo subjugados apenas em roupas íntimas. Tudo apontava na mesma direção: Honduras estava disposta a adotar o método do presidente salvadorenho Nayib Bukele.

Até agora, mesmo em plena situação de emergência, muitos hondurenhos resumem a vida em Tegucigalpa, a capital, como uma prisão a céu aberto. Assaltos e sequestros são diários, há pontos de táxi que pagam taxas de extorsão a até sete grupos diferentes, farmácias alertam que o dinheiro fica guardado em um cofre do qual os funcionários não têm chave, as avenidas estão cheias de carros com vidros enfumaçados e os bairros em locais mais altos, as favelas, ainda são controlados por gangues.

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Em nove meses, 23 caminhoneiros foram mortos. O primeiro crime contra ambientalistas em 2023 ocorreu em Honduras — Jairo Bonilla e Aly Domínguez, que defendiam o Rio Guapinol contra uma mineradora — e desde então oito já foram assassinados. Todos os crimes ocorreram dentro de um estado de exceção, onde 90% dos homicídios permanecem impunes.

Ao assumir a presidência, Xiomara Castro tomou uma decisão inédita: tirou a segurança das mãos do Exército. Queria fortalecer a polícia, órgão ineficaz, carente de pessoal e de credibilidade junto à população. O experimento não teve tempo de tomar forma.

— Não é coincidência que chegue uma mulher reformista, que não é perfeita, já que também tem acusações de corrupção, mas que diz que vai mudar as coisas e desde então a violência aumente — diz o jornalista investigativo Jared Olson.

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No dia 6 de dezembro de 2022, após uma crise aguda devido à extorsão no setor de transportes, Castro decretou estado de emergência em metade do país, o que inclui as grandes cidades e os municípios mais violentos. Suspendeu garantias constitucionais, como a liberdade de circulação e associação, e permitiu buscas e apreensões sem mandado com o objetivo declarado de facilitar a investigação de crimes. O estado de emergência foi prorrogado, por enquanto, até 6 de outubro.

O Ministério da Segurança, que publica periodicamente os avanços da medida, indica que até julho de 2023 foram registrados 375 homicídios a menos do que no mesmo período do ano passado. É um fato: Honduras tem agora a taxa de homicídios mais baixa dos últimos 18 anos e, mesmo assim, continua a ser a segunda mais alta da América Latina, atrás apenas da Venezuela.

— Acreditamos que a taxa não diminuirá muito mais, porque responde a um modelo de dissuasão e controle, onde o uso da força é priorizado mas as raízes da violência em si não são atacadas — afirma o analista de segurança Leonardo Pineda. — Ou seja, a falta de acesso à saúde, à educação, a um ambiente de vida digno.

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A principal pesquisa de opinião do país, realizada em julho pela empresa ERIC-SJ, mostra que a insegurança é a terceira preocupação da população, muito atrás da crise econômica e da falta de emprego. As três causas levaram a uma fuga de hondurenhos: cerca de um milhão de pessoas deixaram o país, o equivalente a 10% da população.

Mas, se quase metade dos cidadãos concorda com o estado de exceção, de acordo com outra sondagem da Associação para uma Sociedade Mais Justa (ASJ), 77% dizem se sentir igualmente ou ainda mais inseguros do que antes da medida entrar em vigor. Analistas concordam que o estado de exceção existe no papel, mas não mudou, nem para melhor nem para pior, o cotidiano da população.

— Tentaram seguir a tendência de Nayib Bukele, mas Honduras não está preparada para algo assim — diz Pineda.

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Os motivos são muitos: Honduras tem uma posição geográfica chave, com fronteiras terrestres com a Guatemala, El Salvador e Nicarágua.

— É um país-chave para o tráfico de drogas no hemisfério. El Salvador é apenas um pequeno pedaço de terra que pode ser evitado, mas para levar cocaína da Venezuela para o México é preciso passar por Honduras — diz Olson, que investiga corrupção e segurança no país há quatro anos.

Além disso, El Salvador tem um território cinco vezes menor, com quase três vezes mais policiais e duas vezes mais militares que Honduras. O país tem uma das concentrações policiais mais baixas do continente por pessoa: 1,8 por mil habitantes. O Panamá, por exemplo, tem 5,9 — a ONU recomenda uma proporção de 3 policiais para cada mil habitantes.

— Temos um déficit aproximado de cerca de 17 mil policiais no país. Em 2022 ainda houve uma queda. Os jovens não querem ser policiais — acrescenta o diretor de segurança da ASJ, Nelson Castañeda.

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Há ainda outra questão: a forte ligação entre os membros das gangues e o Estado.

— É mais fácil em El Salvador eliminar os membros das gangues porque eles não servem para nada, mas em Honduras é diferente. As forças de segurança movimentam muito dinheiro do tráfico de drogas e não querem eliminar completamente os membros das gangues, porque eles lhe são úteis, são usados para massacres e assassinatos — diz Olson, que mora na Cidade do México, para onde teve que fugir como resultado de suas investigações. — E enquanto os deixam agir, as forças de segurança abandonam as comunidades à própria sorte, durante meses inteiros, anos.

As gangues e os militares

Nada parece ter mudado muito na configuração dos bairros mais perigosos desde a entrada em vigor do estado de emergência. Pelo menos, não na prática. Nas comunidades da capital hondurenha não se pode entrar sem convite. Se estiver dirigindo, o motorista precisa deixar as janelas abertas e piscar as luzes; se estiver de moto, o capacete precisa ser levantado para que o rosto possa ser visto.

Desde o estado de emergência, são muitos os jovens "olheiros" que aparecem na imprensa como imagem de sucesso das operações especiais. O Ministério da Segurança se vangloria em um relatório recente onde afirma que, até 19 de julho, mais de 1.300 pessoas foram detidas — cerca de 500 supostamente envolvidas com gangues. A grande maioria foi levada por crimes de tráfico de drogas, e cerca de 250 por extorsão.

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No entanto, segundo dados da Associação para uma Sociedade Mais Justa (ASJ), menos de metade dos presos por extorsão, por exemplo, foram julgados: apenas 84. A maioria é presa e libertada.

— Eles levam os detidos a um tribunal e não conseguem provar os crimes, porque há muitas deficiências na investigação e o sistema de identificação balística não funciona, por exemplo. Aí, têm que libertá-los ou mantê-los presos sem pena, o que é tão ruim quanto. O universo dos presos tornou-se mais uma medida de pressão e repressão, para propagandear que algo está sendo feito contra a insegurança — diz Pineda.

Segundo os analistas, as gangues são o inimigo perfeito no imaginário público:

— Eles são o inimigo criado, representam todos os males. Mas dizemos desde 2004: os membros das gangues são assassinos de aluguel e um braço executivo da liderança empresarial, política e militar. Eles servem como bucha de canhão e são a desculpa perfeita para um estado de emergência — afirma a jornalista investigativa Wendy Funes.

O último presidente, Juan Orlando Hernández, está preso em Nova York por tráfico de drogas, acusado de facilitar a entrada de toneladas de cocaína no território dos Estados Unidos e de receber milhões de dólares de organizações criminosas de seu país e do México, incluindo o sanguinário Cartel de Sinaloa.

— O problema do tráfico de drogas não foi embora com Juan Orlando, ficou aqui. Os traficantes estão usando as gangues como braço armado, como assassinos de aluguel — diz Pineda. — Há intercâmbio entre o Estado e o crime organizado. Usam uns ao outros para seus próprios interesses. Principalmente o Exército, que manipula as gangues como peças de xadrez.

Relatos de tortura nas prisões também dispararam desde que elas voltaram ao controle dos militares. Durante décadas, a corrupção permitiu que as penitenciárias no país se tornassem centros de operações e laboratórios do crime organizado, e ordens de assassinato e extorsão saíam diariamente das prisões.

Agora, elas são o principal foco de queixas contra os direitos humanos. São bunkers onde jornalistas e organizações não podem entrar: a maior semelhança que Honduras conseguiu até agora com o regime de Bukele.

— Elas eram um braço executor do narco-Estado — explica Wendy Funes. — Os militares fizeram uma cópia barata das prisões de El Salvador. Até agora o estado de emergência tem sido apenas uma resposta de emergência, um teatro, uma medida tomada para dar uma resposta à opinião pública, mas se toda a questão da segurança passar para os militares, sim: teremos um risco.