Economia

Mais prazo para estatais de saneamento cria incerteza para cumprir metas de universalização

Empresas têm até o fim deste ano para provar capacidade de investimento. PPPs são solução para viabilizar aportes e assegurar prestação do serviço, dizem especialistas

Agência O Globo - 26/07/2023
Mais prazo para estatais de saneamento cria incerteza para cumprir metas de universalização
Congresso - Foto: Jonas Pereira/Agência Senado

Uma das principais novidades trazidas na regulamentação do Marco do Saneamento publicada em 13 de julho é a extensão de prazo para que empresas do setor comprovem ter capacidade econômico-financeira para realizar os investimentos necessários para cumprir metas de universalização de serviços de água e esgoto previstas na legislação do setor.

Agora, as empresas estaduais que ainda não conseguiram comprovar saúde financeira terão até 31 de dezembro deste ano para fazê-lo — o prazo original era dezembro de 2021.

A concessão de mais tempo para as estatais foi resultado da negociação para destravar os decretos federais. Em abril, o governo Lula chegou a editar regras para o setor, mas trechos foram alterados no Congresso. Uma costura política acabou levando a novos textos.

Representantes do setor privado ainda questionam, contudo, a possibilidade, prevista nos novos decretos, de que as empresas que não cumpram os requisitos financeiros possam elaborar um plano de metas de até cinco anos para chegar lá.

Para o setor privado, o prazo pode atrasar a realização de investimentos e, consequentemente, postergar a universalização dos serviços de água e esgoto, prevista para 2033.

Falta documentação

Hoje, das 24 companhias estaduais de saneamento, oito não apresentaram, ainda, a documentação para comprovar sua saúde econômica, entre elas a Cedae — a empresa concedeu parte dos serviços, mas continua responsável pelos sistemas produtores de água de toda Região Metropolitana do Rio.

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A Copanor, de Minas Gerais, teve as contas reprovadas. A também mineira Copasa e a catarinense Casan tiveram a documentação aprovada com restrições. No grupo das aprovadas constam 13 empresas, entre elas a Sabesp. A gaúcha Corsan, privatizada no ano passado, também teve as contas aprovadas.

— Essa possibilidade de, caso não haja a comprovação, seja feito um plano de metas, é um ponto de atenção. Embora dê uma possibilidade de planejamento futuro, se as empresas estaduais e municipais se mantiverem no mesmo modelo, dificilmente se elevará o volume de investimentos no setor. A alternativa seria buscar parcerias público-privadas para agilizar os aportes — explica Luana Pretto, presidente do Trata Brasil.

As parcerias público-privadas (PPPs) são uma modalidade de concessão usada em casos em que a viabilidade econômico-financeira do projeto demanda que o poder concedente dê alguma contraprestação ao concessionário privado.

Para Maíra Maldonado, analista de energia e saneamento da corretora XP, os decretos novos são majoritariamente positivos por terem deixado de lado “temas que poderiam mudar os institutos do marco legal”, como a chamada prestação direta.

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O Marco do Saneamento estipula a formação de blocos de municípios para que haja a prestação do serviço de água e esgoto de maneira regionalizada. Em regiões metropolitanas ou microrregiões formadas pelos estados, o titular do serviço de saneamento é um colegiado formado por municípios e governos estaduais.

Contratos irregulares

Para a Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), se um dos membros do bloco vai prestar o serviço, isso não demandaria licitação, seria uma prestação direta. Essa situação não estava regulamentada pela lei, mas a Cagepa, estatal da Paraíba, usou esse argumento para manter a operação sem licitação no estado. Para o setor privado, a interpretação é uma deturpação do marco. O tema está sendo judicializado.

— O grande ponto positivo do decreto foi a retirada da possibilidade da prestação direta. Agora, entendemos que quando acaba um contrato de programa (nome dado aos antigos contratos entre municípios e estatais sem licitação), será necessário fazer uma concorrência — diz Luana Pretto.

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Hoje, o Brasil tem 1.141 municípios com contratos em situação irregular ou que têm a prestação dos serviços realizada por empresas que não comprovaram a capacidade financeira, de acordo com levantamento da GO Associados e do Instituto Trata Brasil. Ao todo, são 29,9 milhões de pessoas em cidades que estão nessa situação, o que representa ao menos 14% da população.

Para Roberto Linhares, vice-presidente da Aesbe, porém, empresas com contratos vencidos enfrentarão dificuldades para modelar PPPs, mesmo se quiserem:

— Para fazer uma PPP ou pegar dinheiro do mercado de capitais é necessário ter recebíveis como garantia. Se o contrato não está regular, como fazer a comprovação? Temos cerca de 700 municípios nessa situação. Vai ser muito difícil cumprir o prazo de universalização até 2033 se não houver algum tipo de regularização da situação.

Regionalização é desafio para o setor

O mapa da regionalização do saneamento básico — com serviços estruturados a partir da criação de blocos regionais com a adesão de um grupo de municípios ou de todo o estado — ainda não está completo. Os estados que estão na lanterna desse processo terão maior dificuldade de cumprir a meta de universalizar o acesso a água e esgoto até 2033, avaliam especialistas.

Os novos decretos que regulamentam o setor, publicados neste mês, ampliaram o prazo para a regionalização da prestação do serviço para o fim de 2025, ante março de 2023 originalmente.

Estados como Acre e Roraima têm todas as cidades em contratos precários, ou seja, irregulares. A situação é majoritariamente irregular também em Maranhão, Paraíba, Pará e Piauí. No caso do Acre, a dificuldade é a resistência da capital, Rio Branco, de integrar um bloco único com os demais municípios do estado na concessão, o que inviabiliza o projeto.

Luana Pretto, presidente do Instituto Trata Brasil, frisa que a regionalização dos serviços em si é um desafio. E também um dos pontos da lei a serem aprimorados.

— O saneamento básico só vai acontecer se a união das cidades grandes e pequenas funcionar. E é preciso ter instrumentos para incentivar isso porque os serviços têm de chegar a todos os lugares. É a melhor escolha, mas a modelagem precisa ser aprimorada.

Estados que saíram na frente, como Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Amapá têm vantagem principalmente pelo saneamento ser um setor de ciclos de longo prazo. Nas melhores condições, uma nova operação leva de cinco a sete anos para começar, contando estruturação, captação de financiamento, leilão, licenciamento e obras.

Sem limite de 25%

Para alguns especialistas, os novos decretos acabam com as incertezas regulatórias e favorecem as parcerias público-privadas (PPPs), ao derrubar o limite de que até 25% do valor do contrato fossem viabilizados via PPP.

— O que comemoramos neste momento é o fim da incerteza. Sabemos a regra do jogo, agora vamos retomar os projetos. O que está por trás do novo decreto é permitir o fortalecimento das companhias estaduais via PPPs. Haverá flexibilidade para regularizar contratos e, aí, condições melhores para fazer PPPs — diz Percy Soares Neto, diretor executivo da Abcon Sindcon.

Para outros, os decretos não acabaram por completo com a insegurança jurídica porque deram fôlego às estatais de financiamento que não conseguiram comprovar sua capacidade de investir e honrar as metas de universalização.

— O marco atual é algo que, pela primeira vez, está funcionando. O novo decreto traz insegurança, o que o empresariado menos quer, sobretudo o investidor estrangeiro. Estava previsto que estatais sem capacidade para investir perderiam a concessão. Pode-se discutir se os prazos eram muito rígidos. Mas não se pode questionar o marco ou não chegaremos a 2033 com a universalização — afirma Renato Sucupira, presidente da BF Capital.