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Caixa-preta dos fundos de pensão: o que o nosso bolso tem a ver com isso?

08/09/2016
Caixa-preta dos fundos de pensão: o que o nosso bolso tem a ver com isso?

Abriu-se a caixa-preta dos fundos de pensão. “Onde se puxa uma pena sai uma galinha” (Teori Zavascki). Quatro fundos de pensão estatais estão sob a mira da PF (na operação Greenfield): Petros (fundo de pensão dos funcionários da Petrobras), Previ (fundo dos funcionários do Banco do Brasil), Funcef (fundo dos funcionários da Caixa) e Postalis (fundo de pensão dos funcionários dos Correios). Sete pessoas foram presas (até agora). São mais de 40 os envolvidos.

Os fundos de pensão são dinheiro dos trabalhadores de empresas estatais gerenciados com o objetivo de complementar suas aposentadorias. As gerências, até aqui, têm sido políticas. Os fundos investem em empresas privadas. O Estado tem ingerência nos fundos. Estado, Política e Mercado estão envolvidos nesses negócios, que constituem o núcleo essencial do capitalismo (estatal e privado) à brasileira, que é causador de imensos danos sociais (social harm).

O governo também contribui para os fundos e ainda tem responsabilidade sobre eles. Há dinheiro público envolvido no negócio. Mais: quando um fundo tem prejuízo isso pode resultar na necessidade de dinheiro público para cobrir o rombo. Em síntese, nosso bolso está envolvido na história.

Empresas investigadas ou relacionadas com a operação Greenfield: Bradesco, Santander, Gradiente, OAS, WTorre, Engevix, auditoria Deloite, Eldorado Celulose (irmãos Joesley e Wesley Batista, donos da J&F), GruPar (Aeroporto de Guarulhos), Sete Brasil, Rio Bravo, Multiner etc. Além da Eldorado, a J&F controla ainda a JBS, Alpargatas, Vigor, Banco Original, Oklahoma e Canal Rural. Dos seus quadros saiu o atual ministro da Fazenda (Meirelles). A Eldorado já tinha sido citada na delação premiada do ex-vice presidente da Caixa, Fábio Cleto, que acusou o pagamento de propinas para obtenção de um financiamento de R$ 960 milhões do FI-FGTS. O esquema envolveria o deputado Eduardo Cunha e Lúcio Funaro, apontado como seu operador.

Motivo da operação: déficits bilionários gerados pelos fundos de pensão (algo como R$ 50 bilhões, conforme a Previc) e gestão temerária ou fraudulenta dos fundos. Dez operações, sobretudo, estão sob investigação (há suspeita de criminalidade organizada, corrupção e crimes contra o sistema financeiro nacional). Do total, R$ 8 bilhões parecem ser inequivocamente desvios criminosos.

Como seria a “gestão temerária” ou fraudulenta? Investimento do fundo em empresas com prejuízos. Não se trata de caso isolado. Há diversos investimentos assim. Investiga-se se alguém ganhou dinheiro com isso. Teria havido manipulação para favorecer pessoas ou grupos empresariais?

A Justiça Federal determinou o sequestro de bens assim como o bloqueio de ativos e recursos de 103 pessoas físicas e jurídicas no valor de R$ 8 bilhões (Valor Econômico).

“Durante as investigações, alguns núcleos criminosos restaram configurados: o núcleo empresarial, o núcleo dirigente de fundos de pensão, o núcleo de empresas avaliadoras de ativos (auditorias) e o núcleo de gestores e administradores dos FIPs” (Fundos de Investimentos em Participações), informou a PF em nota.

A Postalis, por exemplo, perdeu R$ 5 bilhões com aportes em uma empresa que não fazia sentido nenhum, que era a Sete Brasil (ver Míriam Leitão).

Como funciona o capitalismo à brasileira (cleptocrata)?

Há muito tempo já se falava na má gestão dos fundos de pensão (particularmente no governo petista e peemedebista). Quem pediu a investigação, em 2014, foi o PSDB (contra os dois partidos). O uso intenso do dinheiro dos fundos de pensão nas empresas nacionais, no entanto, foi feito também no governo FHC (na era das “privatizações” de fachada). O senso comum supõe que o liberalismo econômico (e as privatizações) tivesse reduzido o tamanho do Estado-empresarial brasileiro. Ledo engano (ver S. Lazzarini, Capitalismo de laços, p. X a XVI). As privatizações do FHC envolveram dinheiro público. Dava-se dinheiro público para as empresas comprarem as estatais. Na era lulopetista a prática se intensificou.

Os fundos de pensão têm tudo a ver com o que é conhecido como capitalismo à brasileira (ou capitalismo de laços, como diz Sérgio Lazzarini, em livro com esse título). Ou crony capitalism (capitalismo dos amigos próximos).

O capitalismo à brasileira envolve setores do Mercado (empresas e bancos) e o Estado. É praticado, portanto, pelos donos cleptocratas do poder (que não se enriquecem apenas pela corrupção, senão também pelos favorecimentos políticos, sobretudo com créditos subsidiados ou capitalizados nas empresas, pelos fundos de pensão).

Trata-se de um “clube”, no plano federal, restritíssimo (com menos de 0,001% da população). Ele paira sobre o eleitorado médio (classes A e B que constitui quase 1/3 da população) assim como o eleitorado da base da pirâmide (2/3 da população). Os beneficiários do capitalismo à brasileira são somente os seletos integrantes do “clube” do capitalismo à brasileira. Os prejudicados somos todos os demais habitantes do país. Uma pequena elite extrativista saqueia o máximo possível do dinheiro público para ela.

A esse “clube” fechadíssimo somente pertencem algumas famílias e alguns capitalistas (notadamente nacionais). E também, claro, os que financiam as campanhas eleitorais dos políticos (formando-se redes de clientelismo).

Você que está lendo esse artigo muito provavelmente nunca botou os pés dentro desse insólito “clube”. Eu tampouco. Como o mundo nos é explicado em fragmentos, muitos não têm ideia de como funciona esse capitalismo, que descende diretamente do patrimonialismo português, que é uma via de mão dupla: o Estado brasileiro está muito presente na exploração do lado produtivo da econômica (não deveria ser, mas é um Estado-empresário forte) enquanto setores do Mercado estão muito presentes na exploração do Estado (do dinheiro público).

Nesse sentido, o Estado brasileiro sempre foi privatizado pelo Mercado. Essa via de mão dupla (envolvendo o Mercado e o Estado reciprocamente) não foi abordada enfaticamente por Faoro (Os donos do poder). Nisso reside uma grande omissão em sua obra (ver Jessé Souza, A tolice da inteligência brasileira).

Não é verdade que a corrupção seja um fenômeno exclusivamente estatal. Muitas empresas e bancos do mercado praticam a corrupção e o favoritismo para seu enriquecimento.

As fronteiras entre o público e o privado se esvanecem no capitalismo à brasileira. Os interesses econômico-financeiros, políticos e governamentais estão amalgamados em torno de um único objetivo: se apropriar da coisa pública, frequentemente de forma ilícita ou politicamente favorecida.

O mau funcionamento das instituições (políticas, econômicas, jurídicas e sociais) que fomentam ou acobertam esse enriquecimento promíscuo constitui o cerne da cleptocracia. A roubalheira do dinheiro público não é a cleptocracia, o fomento e o acobertamento dela sim.

São várias as consequências nefastas do capitalismo à brasileira: concentração do mercado e da riqueza do país, falta de transparência nos negócios, eclipse da concorrência, favorecimento de amigos ou de pessoas ou famílias influentes, escassez do dinheiro público para o cumprimento das funções essenciais do Estado (educação, saúde, segurança e Justiça – coisas que o Mercado não faz com acesso para todos) etc. (ver Sérgio Lazzarini, Capitalismo de laços).

O capitalismo à brasileira cria conglomerados empresariais potentes (com tendência de monopolização do mercado – o que pode significar prejuízo para os consumidores, em razão dos preços altos praticados). O mundo empresarial do capitalismo de laços é pequeno (S. Lazzarini). Desses conglomerados participa o Estado-empresário (sobretudo por meio dos seus bancos e dos fundos de pensão). Fala-se em redes de propriedade quando os capitalistas têm posições acionárias conjuntas nas mesmas empresas (S. Lazzarini).

O uso intenso dos fundos de pensão (e do BNDES) para capitalizar empresas privadas se deu com FHC (e foi agravado com o lulopetismo) (ver Sérgio Lazzarini, citado). Tudo feito sem praticamente nenhuma transparência. Sendo escasso (e muito caro) o dinheiro no mercado financeiro, fortunas incalculáveis são alcançadas (pelos donos cleptocratas do poder) com o uso do dinheiro público subsidiado ou investido no negócio privado (isso é o que a PF está agora investigando).

A “porta-giratória” é constante: agentes do mercado vão para dentro do Estado (para ocupar cargos públicos) e vice-versa. O atual ministro da Fazenda (Meirelles) veio da JBS. O anterior (governo Dilma) veio do Bradesco. Isso tende a gerar muita sinergia nos negócios (e nos favoritismos estatais). “Benesses estatais”, se dizia no tempo de Colônia. Os interesses se cruzam. O clube privilegiado do capitalismo à brasileira se fortalece a cada governo. A corrupção é fenômeno frequente nesse cenário. Daí nasce a promiscuidade nas relações entre os agentes privados e públicos, destacando-se os políticos e os partidos.

Os novos donos cleptocratas do poder se sofisticaram (desde a década de 30, com Getúlio no comando); a Lava Jato vem demonstrando os laços de corrupção e favorecimento entre eles, mas a roubalheira do dinheiro público é a mesma. E a conta, claro, sempre vai para o contribuinte.

Os verdadeiros donos do poder são os que se envolvem em laços corporativos-estatais. Muitas empresas do Mercado não tomam esse caminho. As que se inclinam por essa seara, sabem que a riqueza se faz por meio das amizades, dos partidos, dos políticos e dos financiamentos eleitorais. Muitas fortunas foram e são construídas no Brasil por essa via promíscua. Pior: contando com o fomento ou acobertamento das instituições (nisso consiste a cleptocracia).

A análise das doações eleitorais de 1998 e 2002 mostra que elas geraram impactos no valor de mercado das empresas doadoras: de cada R$ 100 mil em doação a políticos vencedores há um incremento das ações em 2,8%. As doações são um bom negócio e abrem portas para empréstimos subsidiados, uso do dinheiro dos fundos de pensão, captura de benefícios públicos, isenções fiscais, restrição do mercado estrangeiro, concentração de renda, monopólios, desincentivos à inovação etc.

O Brasil dos donos do poder continua regido pelos laços, alianças e amizades. DaMatta (a casa e a rua), Sérgio Buarque de Holanda (o homem cordial) e Faoro (Os donos do poder e o patrimonialismo) mostram isso em suas análises antropológicas e sociológicas. O erro que cometem é esconder que o mundo do Mercado está envolvido até o último fio de cabelo com nossa corrupção e nossa cleptocracia. Jogam culpa sempre apenas no Estado (e isso não é correto).

Há ladrões do dinheiro público tanto entre os agentes públicos (governantes, políticos, funcionários) como entre os agentes privados. O financiamento das campanhas eleitorais está na raiz dessa problemática.

O que fazer?

Sérgio Lazzarini (Capitalismo de laços) sugere: mais transparência, isolamento político (afastamento da dependência entre os mundos da economia e da política), redução dos custos de transação (burocracia, dificuldade de abrir empresas, judiciário moroso etc.) e duro combate às condutas violadoras da concorrência (o que vem sendo feito, agora, em certo sentido, pela Lava Jato).

Erro frequente: supor que todo esse vínculo entre o mundo do Mercado e do Estado seja coisa “brasileira”. Sarkozy, por exemplo, na França, está na iminência de ser julgado por suas campanhas eleitorais “compradas” pelo mundo econômico-financeiro. Os laços, as amizades, as alianças, os conchavos existem em todas as democracias no mundo todo. A diferença é de grau: nos países cleptocratas (como é o caso do Brasil) as instituições (políticas, econômicas, jurídicas e sociais) são complacentes com essas práticas extrativistas e elitistas. Fazem parte do jogo. Nações com instituições extrativistas tendem ao fracasso (ver Acemoglu-Robinson, Por que as nações fracassam).