RJ em Foco
Rio terá placas para identificar locais de tortura e repressão da ditadura
Lei aprovada na Câmara cria programa de memória para sinalizar prédios e espaços ligados a crimes do regime militar na cidade
O prédio na região central do Rio atrai naturalmente o olhar. São apenas três pavimentos, mas seu desenho monumental, que bebe diretamente no caldeirão do ecletismo da arquitetura em voga por aqui no início do século XX, garante ao palacete certo charme até os dias de hoje. A beleza para por aí. Hoje vazio, o número 40 da Rua da Relação abrigou por décadas a sede do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, órgão responsável por perseguir, prender, torturar e matar quem ousasse desafiar regimes ditatoriais como o de 1964. Quem passa por ali desavisado pode admirar o prédio, mas não faz ideia das tristes memórias que o lugar evoca. Para dar fim a esse manto de invisibilidade lançado sobre este e outros locais ligados à repressão política na cidade, a Câmara Municipal do Rio acaba de aprovar lei que prevê a instalação de placas informativas capazes de identificar e lembrar as histórias que jamais deveriam ser esquecidas.
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‘Papel pedagógico’
A lista dos pontos a serem identificados ainda será elaborada. No texto publicado no Diário Oficial de 9 de dezembro, fica estabelecida a criação do Programa Memória, Verdade e Justiça Carioca com a finalidade de “identificar publicamente os lugares de repressão política durante a ditadura cívico-militar (1964-1985) em todo município”. A prefeitura vai designar o órgão que ficará responsável pela implantação do programa. A escolha dos locais que receberão as placas terá como fonte principal o relatório da Comissão Nacional da Verdade, mas está aberta a indicações feitas por movimentos sociais e populares, além de organizações que militam “na promoção dos princípios de Memória, Verdade e Justiça e na defesa dos direitos humanos”.
— A gente vive um cenário em que ataques à democracia, como os do 8 de Janeiro, e falas saudosistas sobre a ditadura ainda aparecem na disputa política. Isso tem relação direta com a ausência de memória sobre o período. Se houvesse um debate público mais difundido e consistente sobre o que foi a ditadura, muitas dessas falas antidemocráticas não se repetiriam — diz a vereadora Maíra do MST (PT), autora da lei, que é subscrita também por Mônica Benicio (PSOL) e Leonel de Esquerda (PT). — As placas, por si sós, não resolvem o problema do passado, mas cumprem um papel pedagógico. A cidade precisa ser um espaço educativo.
A vereadora acredita que as primeiras placas devem ser instaladas já no ano que vem após os trâmites de regulamentação junto à Prefeitura. A ideia é contar com a colaboração de um grupo de trabalho que reúna organizações reconhecidas na área, além de professores universitários e pesquisadores que estudam o tema há décadas.
Crime:
Uma das possíveis fontes para a elaboração da lista é o livro “Lugares de Memória e Resistência no Estado do Rio de Janeiro” (Ed. PUC-Rio, 2018). O trabalho, feito com a colaboração de mais de 40 pesquisadores no âmbito do Núcleo de Direitos Humanos (NDH) do Departamento de Direito da PUC-Rio, compilou 101 lugares relacionados à repressão no estado do Rio. Boa parte deles na capital.
Está ali o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) que funcionou entre 1970 e 1979 no 1º Batalhão de Polícia do Exército (BPE), na Tijuca. Foi ali que, entre muitos outros, foi torturado e morto o ex-deputado Rubens Paiva, episódio a partir do qual se desenrola o filme “Ainda Estou Aqui”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano.
Alguns outros locais elencados são: a 1ª Companhia de Polícia do Exército da Vila Militar, em Deodoro; o Hospital Central do Exército (HCE), em Benfica; a Base Aérea do Galeão; o antigo Complexo Penitenciário Frei Caneca; a chamada Invernada de Olaria; o Instituto Penal Talavera Bruce; o Riocentro; o Cemitério Ricardo de Albuquerque; a 4ª Subseção de Vigilância do Alto da Boa Vista, a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Flamengo; a Cinelândia, as imediações da Candelária e até navios-prisão ancorados na Baía de Guanabara que, por óbvio, não poderão ser sinalizados à luz da nova lei, mas merecem ser lembrados como exemplo do nível de sofisticação macabra atingido pelo regime ditatorial.
— No livro, construímos uma topografia da repressão para servir como um instrumento de pedagogia informal para a cidadania em geral. É uma notícia ótima que a Câmara Municipal tenha resolvido criar essa placa de memorialização de lugares da ditadura, seja de repressão, seja de resistência. A identificação dos lugares de memória é um passo fundamental — diz o professor José Maria Gómez, coordenador da publicação.
Neto de Mário Alves de Souza Vieira, preso no Doi-Codi da Tijuca, morto ali e desaparecido político da ditadura militar desde 1970, o músico Léo Alves Vieira, 47 anos, acredita que a lei representa um passo importante na disputa pela memória histórica do país.
— Quando você coloca uma placa dizendo que ali funcionou um centro de tortura, isso tem uma força simbólica e real muito grande. É parte da construção da memória. Essa luta não pode ficar só nas costas dos familiares. Um dia a gente não vai mais estar aqui, e quem vai cuidar da memória para que aquilo não se repita tem que ser a sociedade. Medidas como essa ajudam a impedir o apagamento e a mostrar que a ditadura não é passado distante, ela deixa marcas até hoje — diz Léo Alves, que compõe a direção executiva da Coalizão Brasil Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia.
O arquiteto Felipe Nin, cujo tio Raul Amaro Nin Ferreira foi assassinado dentro do HCE, como demonstrado pela Comissão Estadual da Verdade no Rio, também celebra a iniciativa.
— Essa lei é um desdobramento importante do trabalho da Comissão da Verdade. Uma das recomendações era justamente a sinalização dos lugares que foram palcos da repressão política. É importante ainda mais nesse momento em que o Brasil pela primeira vez condena militares que tentaram golpe de Estado. A gente tem que reafirmar os princípios da democracia, lembrar o que foi a ditadura — afirma Felipe Nin, membro do Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação.
Outra lei
O ativista lembra que a cidade já conta com outra legislação, aprovada em 2022, que criou o Circuito Histórico da Luta pela Democracia, focado no Centro, por iniciativa dos então vereadores Tainá de Paula e Chico Alencar. A lei, no entanto, ainda não saiu do papel. O modelo das placas foi definido, mas até agora nada. Procurado, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), órgão da prefeitura encarregado de levar adiante a empreitada, não respondeu sobre os motivos do atraso.
Presa e torturada pela ditadura, Cecília Coimbra foi detida em 1970 e passou três meses e meio incomunicável no DOI-CODI da Tijuca, onde sofreu torturas. Para ela, a nova lei municipal é bem-vinda e precisa ser ampliada.
— É uma medida importantíssima. Uma medida que já deveria ter vindo do governo federal há muito tempo. Há muito tempo mesmo. A gente saúda essa iniciativa no Rio, mas continua reivindicando que isso se torne uma lei federal, válida para todos os estados brasileiros — diz Cecília, vice-presidente do Tortura Nunca Mais no Rio que em novembro deste ano completou 40 anos de lutas.
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