Variedades
Com Vale Tudo de volta à TV, romance de Vera Saad revisita anos Collor e traumas de uma década que não passou
Contemplado pelo ProAC/SP, “A face mais doce do azar” narra, com sensibilidade e força, o impacto da política e do abuso na vida de uma pré-adolescente brasileira nos anos 90

A novela Vale Tudo em remake da TV Globo reacendeu debates sobre ética, corrupção e impunidade no Brasil — temas que seguem assustadoramente atuais. Exibida originalmente entre 1988 e 1989, a trama se encerrava com a pergunta “vale a pena ser honesto neste país?”, numa época em que o jovem Fernando Collor despontava como promessa contra os privilégios da velha política. Décadas depois, Collor voltou aos noticiários ao ter a prisão decretada pelo STF por corrupção e lavagem de dinheiro, iniciando o cumprimento da pena em regime domiciliar. É nesse ambiente de memória coletiva e frustração histórica que se inscreve A face mais doce do azar (Editora Claraboia), novo romance da escritora Vera Saad (@verah_saad). Contemplado pelo ProAC/SP, o livro revisita os anos 1990 com o olhar de uma menina em formação cuja família é atravessada pela devastação econômica do Plano Collor — e por traumas mais silenciosos, como o abuso sexual e a opressão estrutural.
O pano de fundo político do livro é fiel aos fatos: eleição, debates, confisco das poupanças. Mas a lente da narrativa é íntima. Dubianca, uma pré-adolescente sensível, vê sua vida mudar quando a família perde tudo e se muda para o porão da casa dos tios. A instabilidade política se desdobra em conflitos familiares, tensões com a prima, descobertas do desejo, experiências de violência e uma perda marcante. A protagonista, por vezes ingênua, compartilha com o leitor seus pensamentos conflitantes e a doçura ameaçada da adolescência.
“Não podemos simplesmente dizer que não gostamos desse tema. Tudo é política”, afirma Vera. A autora também destaca que a história se passa antes de avanços importantes nas pautas femininas. “Vivenciei o mundo antes e depois do ‘não é não’. Não conheço uma mulher com mais de 40 anos que não tenha sofrido abuso sexual — e o que é pior, sem ter consciência de que aquilo era um abuso.”
Entre os méritos da obra está o resgate dos anos 1990 para além dos fatos políticos: o livro toca em dores particulares causadas pelo congelamento das poupanças, que afetou profundamente a saúde mental de milhares de famílias. Um personagem secundário desaparece em meio ao caos econômico — símbolo da desesperança de muitos. Em paralelo, a narrativa trabalha com delicadeza o impacto psicológico do abuso, trazendo tensão crescente e o retrato de uma infância marcada por silêncios.
Apesar da dureza dos temas, o romance oferece ao final um sentimento de exorcismo — não de esquecimento, mas de amadurecimento. De leitura fluida, é também uma oportunidade de apresentar às novas gerações um Brasil recente que muitos ainda não compreendem totalmente — pelos olhos de quem sentiu tudo sem poder reagir.
Sobre a autora
Vera Saad nasceu em Ourinhos (SP) e vive em São Paulo. Sua carreira literária começou em 1997, ao vencer o concurso de contos Sesc On-line, com júri de Ignácio de Loyola Brandão. Foi finalista do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana com o romance Estamos todos bem. Publicou ainda os livros Mind the gap (2011), Telefone sem fio (2014) e Dança sueca (2019), este último com menção honrosa da UBE/RJ. Colabora também com a revista Vício Velho.
A ideia para A face mais doce do azar surgiu em 2018, inspirada pelas eleições daquele ano e pela leitura de Complô contra a América, de Philip Roth. “Lembrei do caos do Plano Collor. Parecia distopia, mas era real”, diz Vera. Com mentoria de Jarid Arraes e apoio do ProAC/SP, finalizou o livro no dia da posse de Lula em 2023. “Sempre acharei essa data significativa.”
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