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Governo argentino endurece lei de migração por decreto e 'abre a porta para arbitrariedades'

Por Sputinik Brasil 03/06/2025
Governo argentino endurece lei de migração por decreto e 'abre a porta para arbitrariedades'
Foto: © AP Photo / Rodrigo Abd

O governo argentino endureceu os requisitos para ingressar e permanecer no país e definiu mudanças no acesso à saúde e à educação pública para imigrantes. A medida, foi tomada, contornando o Congresso é inconstitucional segundo especialista ouvido pela Sputnik.

A administração liderada pelo presidente Javier Milei deu uma nova guinada restritiva à política migratória argentina. Por meio de um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), o Executivo modificou a lei que regula a migração, tornando mais rígidos os requisitos para estrangeiros que pretendem entrar e permanecer no país.

O porta-voz presidencial Manuel Adorni, as mudanças buscam "organizar" o sistema migratório e priorizar aqueles que "contribuam para o desenvolvimento nacional".

"A gravidade do decreto está em que ele abre espaço para arbitrariedades: basicamente, a medida visa retirar direitos dos imigrantes", disse à Sputnik o advogado especializado em direito migratório, Leonardo Martínez.

De acordo com o especialista, a reforma "possui vícios de inconstitucionalidade", uma vez que a Constituição argentina garante os mesmos direitos civis aos estrangeiros que aos cidadãos, e proíbe a imposição de contribuições forçadas, como seria o caso da cobrança por serviços básicos.

"O fato de a lei proibir que pessoas em processo de regularização saiam do país — mesmo para visitar familiares — atenta diretamente contra o direito à livre circulação, válido tanto para argentinos quanto para estrangeiros", ressaltou.

O advogado destacou que o decreto não atende a uma urgência, já que o país não enfrenta emergência migratória, o que invalida o sentido do decreto.

"A Argentina não tem um problema de imigração. Aqui estamos discutindo um tema que não está na agenda, mas cujas consequências podem criar precedentes para futuros governos que queiram aprofundar qualquer direção", afirmou Martínez.

Um dos pontos mais sensíveis diz respeito às mudanças no regime de acesso à saúde. A partir de agora, estrangeiros deverão possuir seguro médico ou pagar pelo atendimento em hospitais públicos, salvo em situações de urgência.

Paralelamente, as universidades públicas estarão autorizadas a cobrar mensalidades de estudantes sem residência permanente — uma medida voltada diretamente àqueles que entram no país com vistos temporários ou em situação migratória irregular.

A reforma também dificulta a obtenção da cidadania argentina. Além disso, o decreto estabelece novos critérios de entrada no país. Aos controles migratórios, será somada uma declaração juramentada obrigatória, em que o visitante deverá detalhar o motivo da entrada e comprometer-se a mantê-lo.

Os mecanismos de expulsão também foram reformulados e agora permitem a deportação de estrangeiros condenados por qualquer crime, mesmo que a sentença ainda não tenha transitado em julgado ou se tratar de penas leves.

Residências já concedidas poderão ser canceladas caso o migrante cometa falsificações de documentos, permaneça fora do país por longos períodos ou descumpra as novas obrigações de declarar domicílio físico e eletrônico.

De acordo com o Censo de 2022, 4,5% da população residente na Argentina nasceu no exterior. As comunidades mais numerosas vêm da Bolívia, Paraguai, Venezuela, Peru e Chile. Ao longo de toda a sua história, o país sul-americano recebeu fluxos migratórios tanto por razões econômicas quanto humanitárias, consolidando-se como um dos mais abertos da região.

"A Argentina não será terra fértil para a chegada de criminosos", declarou Adorni, porta-voz presidencial, explicando que a medida faz parte de uma política de "ordem e eficiência". Ele também enfatizou que "o país continua sendo aberto, mas não pode sustentar um sistema fiscal e socialmente inviável".

O decreto recebeu dezenas de contestações por parte de organizações de direitos humanos. O Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) advertiu que muitas das medidas anunciadas já estão previstas na legislação vigente, como o artigo 29 da atual Lei de Migrações que permite negar a entrada de pessoas com antecedentes criminais.

A organização também alertou para o uso de um decreto presidencial para introduzir mudanças que, por sua natureza, deveriam ser debatidas no Congresso.

"Trata-se de uma reforma substancial do regime migratório, que inclusive pode violar compromissos assumidos pelo país no âmbito do Mercosul", advertiu a entidade em um comunicado.

Apesar da omissão ao Parlamento, o Congresso pode se pronunciar sobre o decreto mesmo após ele entrar em vigor. No entanto, para derrubá-lo, a oposição precisa reunir dois terços dos votos tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado.

Durante o primeiro ano e meio do governo de Milei, o Congresso revogou dois de seus decretos: um que aumentava verbas discricionárias para os serviços de inteligência e outro que havia sido usado para nomear juízes da Suprema Corte de Justiça.

O peso do Executivo

O advogado relativizou o impacto do pacote de anúncios. Segundo Martínez, "mais do que uma mudança de fundo, isso parece um anúncio político. Basta lembrar que a legislação atual já permite a expulsão em caso de crime cometido", que é justamente o ponto mais enfatizado pelo governo.

Para Martínez, o uso de um decreto abre margem para contestações não apenas sobre o conteúdo, mas também sobre a forma.

"A ferramenta do decreto acaba sendo vulnerável, porque a caneta presidencial não tem a mesma legitimidade que uma lei aprovada pelo Congresso", observou.