Internacional
Análise: decretar cartéis de droga como terroristas lubrifica o aparato de guerra ao terror dos EUA
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas afirmam que decreto de Trump é "mais do mesmo" nas políticas ineficazes contra o narcotráfico, abre margem para o intervencionismo dos EUA na América do Sul e ajuda a manter ativa a indústria de guerra ao terr
Logo após tomar posse como novo presidente dos Estados Unidos, na segunda-feira (20), Donald Trump assinou uma série de decretos, entre eles o que passava a considerar cartéis do narcotráfico como organizações terroristas.
Em seu discurso, ele justificou a medida afirmando que, como comandante-chefe, não tem maior responsabilidade do que defender seu país de "ameaças e invasões".
A medida, no entanto, acendeu o alerta de que o decreto possa embasar uma possível intervenção militar dos EUA em outros países, sobretudo da América Latina e do Sul.
Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam como a mudança de status dos cartéis de droga afeta a América do Sul e Latina e se a medida pode abrir margem para a atuação de forças militares dos EUA em países da região.
Priscila Villela, professora do curso de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos Transnacionais de Segurança (NETS), considera que o decreto reflete um desejo de Trump de alcançar duas metas de uma só vez: intervir no México para combater o crime organizado e manter lubrificado o aparato de guerra ao terror dos EUA.
"Acho que essa manobra de classificar esses grupos como terroristas é uma maneira de não só justificar esse plano de uma possível intervenção, como também uma ferramenta para mobilizar todo o aparato governamental que foi criado para a guerra ao terror. Uma maneira de incluir essa intervenção no México, ou eventuais outros países da América Latina, [como a] Colômbia, por exemplo, dentro do orçamento das estruturas burocráticas, dos aparatos que foram criados para a guerra ao terror", explica a especialista.
Ela afirma que a medida é muito preocupante para a América Latina como um todo, mas para o México em especial, enquanto que para a indústria bélica dos EUA a notícia é positiva.
"Por exemplo, toda uma indústria do complexo industrial militar, todo complexo industrial militar que tem sido retraído com a saída dos EUA do Iraque, do Afeganistão, e que tem se engajado muito em guerras, por exemplo, financiado Israel em Gaza, ou dado ajuda para a Ucrânia na guerra com a Rússia, todo esse complexo industrial militar, ele se beneficia muito desse tipo de intervenção ou de guerras internacionais que os EUA venham a participar. E essa pode ser uma nova frente de expansão desse complexo industrial militar", afirma.
Villela enfatiza que o decreto de Trump pode ser um dispositivo para a ampliação da presença militar dos Estados Unidos na América Latina, principalmente no México, alvo de um discurso intervencionista de Trump durante toda a campanha presidencial. Entretanto ela descarta a possibilidade de o Brasil ser afetado por não considerar que o país, neste momento, seja o foco de Trump.
"O Brasil sempre foi um parceiro da cooperação no campo policial com os EUA, então obviamente que a DEA, a polícia antidroga dos EUA, sempre esteve atenta ao Brasil, [eles] sempre influenciaram muito as polícias brasileiras e acho que o Brasil tende a seguir sendo um parceiro nesse sentido. Mas eu, particularmente, não vejo a fala de Trump como uma fala que se direciona ao Brasil, até porque os EUA não são o importante destino hoje das drogas que circulam no Brasil. O destino hoje é principalmente a Europa, o mercado europeu, que aí sim tem expandido a sua presença na cooperação com as instituições policiais brasileiras."
Decreto de Trump pode tornar mais eficaz o combate ao narcotráfico?
Questionada sobre a possível eficácia do decreto de Trump, Villela afirma que a medida é "mais do mesmo" e terá a mesma ineficácia de ações anteriores similares em reduzir a produção e o consumo de drogas e a violência atrelada ao narcotráfico.
"O que provavelmente a gente vai ver com uma maior presença militar dos Estados Unidos no México, em algumas circunstâncias, inclusive, vai ser um aumento da violência, especialmente, uma violência conduzida pelo Estado, e um deslocamento, uma readequação desses cartéis para outras áreas, o que tem sido chamado de efeito balão. Então, os cartéis que hoje estão usando o território mexicano, na medida em que se torne mais difícil, eventualmente, o trânsito por lá, pode ser que eles se reposicionem no Caribe, em outras rotas desse mercado."
Segundo ela, enquanto as políticas não estiverem atentas, sensíveis e conscientes da lógica de mercado que move o narcotráfico, sempre haverá "mais do mesmo".
"Os EUA têm uma demanda gigantesca, eles são os maiores consumidores de cocaína do mundo, quase que o único consumidor da heroína também produzida no México e de outras drogas produzidas no México. E essa demanda vai ser atendida, os cartéis vão se organizar para atender essa demanda, que é muito lucrativa".
Para a professora, a decisão de Trump funcionará como um dispositivo para ampliar a capacidade coercitiva e as políticas que já vêm há décadas sendo direcionadas para a América Latina.
"E o orçamento antiterrorismo está lá, né? É um orçamento gigantesco no governo [dos EUA], e as guerras ao terror estão enfraquecidas, com uma legitimidade também muito questionada da sociedade. Agora tem um novo destino para esse orçamento", afirma.
O narcotráfico como subterfúgio dos EUA para ações intervencionistas
Gisele Ricobom, professora de direito internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), frisa que o discurso de Trump como um todo "reiterou a estratégia da campanha republicana de identificação de supostas ameaças aos EUA para recrudescer o autoritarismo, fragilizando assim a democracia, a proteção dos direitos humanos e buscando legitimar uma política externa interventora, em nome da proteção dos interesses estadunidenses".
"A imigração ilegal, a segurança de fronteira e o tráfico de drogas são subterfúgios para a adoção de medidas rígidas e cruéis contra a população mais vulnerável, sujeita aos abusos persecutórios, às medidas excepcionais, penas mais duras e restrições de variada ordem. A inclusão dos cartéis e organizações como terroristas permitirá rupturas diplomáticas e medidas sancionatórias aos Estados que não se submetam à renovada pauta do terrorismo internacional, especialmente a governos de países não alinhados com os valores conservadores do presidente eleito, sobretudo o México, que neste primeiro momento é o foco principal, mas que avançará para toda a América Latina."
Ela aponta que a medida não ocorreu no primeiro mandato de Trump (2017-2021) porque o republicano foi desestimulado a adotá-la pelos efeitos econômicos que poderia gerar às empresas privadas que possuem negócios e atuam em território estrangeiro, especialmente na América Latina, onde os cartéis têm ampla atuação, seriam desestimuladas frente a preocupações de inferência de possíveis relações dessas organizações nos produtos e negócios comercializados.
Ricobom afirma não ver "nenhuma preocupação genuína em solucionar o problema das drogas", pois a fórmula apresentada por Trump "não é nova".
"E o objetivo não é tratar seriamente o assunto, problematizando o consumo, a complexidade das relações de poder com o crime organizado, as limitações do direito penal frente a uma sociedade cada vez mais suscetível a novas fórmulas. Já conhecemos os resultados dessas políticas e eles são diretamente contrários ao que se propõe, ou seja, aumento de gastos públicos, maior encarceramento e aumento de mortes, sem qualquer impacto para aqueles que comandam a cadeia de negócios e que sofrem com a dependência química", explica a especialista.
No recorte do Brasil, ela afirma que o país pode ser impactado na medida em que parlamentares que têm no discurso punitivista um capital político importante estarão reforçados e legitimados pela política de Trump durante o debate da PEC da Segurança Pública.
"Sabemos dos esforços do governo federal, especialmente do Ministério da Justiça, para preservar os princípios constitucionais, ampliar a participação da sociedade civil no debate, unificar procedimentos, sempre respeitando as autonomias e competências do sistema federativo, mas que já vêm enfrentando resistência da oposição, que ganhará força com essas medidas do governo dos EUA", conclui a especialista.
Por Sputinik Brasil
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