Internacional
Direito internacional defasado impede julgamento de crimes de guerra no Brasil, avaliam juristas
O podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, ouviu neste episódio especialistas em direito internacional para esclarecer o caso do soldado israelense Yuval Vagdani, acusado de crime de guerra que estava de férias no Brasil e acabou fugindo temendo ser preso.
A denúncia foi feita pela Fundação Hind Rajab à Justiça Federal brasileira, que iniciou uma investigação.
Mas, afinal, a Justiça brasileira pode julgá-lo internamente?
O que significa o país ser signatário do Tribunal Penal Internacional (TPI)? Essas e outras questões foram discutidas no programa com advogada da Organização Internacional Pró-Palestina Hind Rajad, Maíra Pinheiro, que protocolou a ação, a professora de direito internacional Tatiana Squeff (UFRGS) e a professora de direito internacional da Universidade Católica de Brasília Priscila Caneparo.
Maíra Pinheiro explicou que a denúncia se baseia na investigação feita por inteligência em fontes abertas.
"Temos uma equipe de investigação que acompanha, a partir das redes sociais, os perfis desses soldados israelenses que publicam registros dos próprios crimes de guerra [...] A equipe de investigação passa também a acompanhar esses perfis para, a partir do momento que eles adentram um país que seja signatário do Estatuto de Roma, a organização acione advogados que atuam em rede, em parceria, para entrar com pedidos de investigação e de prisão e de medidas jurídicas", explicou.
Ela contou que no período das festividades de fim de ano de 2024, foi informada pela rede que Vagdani estava no Brasil e recebeu vídeos e fotos postadas por ele na segunda semana de novembro de 2024, na faixa de Gaza, com instalação de explosivos em residências na região de Al-Nuwayri.
Perfis de outros soldados do mesmo batalhão publicaram postagens similares da demolição controlada. Em um dos vídeos a que ela teve acesso, é possível ouvir os soldados gargalhando com a explosão e cantarolando.
"Esse tipo de ação de explosão de residências — nesse contexto em que você tem tempo de instalar os explosivos nas casas e posar para selfies sorridentes — é muito evidentemente um crime de guerra, porque a não ser que aquele imóvel tenha um objetivo militar, o Estatuto de Roma e outras normas que regem o direito internacional humanitário não permitem a destruição de propriedade civil, de residências, muito menos em massa dessa maneira”, argumentou a advogada.
A equipe, prosseguiu Pinheiro, localizou e contatou uma das famílias palestinas que tiveram suas casas destruídas e que assinou a procuração que autorizou a representação brasileira na ação.
Em seguida, as provas foram apresentadas para a Justiça Federal e para o Ministério Público Federal, antes que houvesse tempo da Polícia Federal efetivamente instaurar um inquérito.
A fuga do soldado com auxílio das autoridades consulares no dia 4 de janeiro tornou-se pública por meio de deputado federal Eduardo Bolsonaro em declarações nas redes sociais em que atribuiu a si mesmo o pedido para que a Polícia Federal arquivasse o processo.
"Ele e o Ministério da Diáspora de Israel articularam juntos o que ele chamou de contraofensiva digital [...] Estamos aguardando agora o Ministério Público Federal se manifestar sobre esse pedido. Nós apresentamos uma petição discordando veementemente dessa manifestação e pedindo para que as investigações continuem, pois mesmo que o agente tenha saído do território nacional, isso não encerra a nossa jurisdição."
Os atos investigativos podem ser, inclusive, salientou ela, remetidos ao Tribunal Penal Internacional, que está prevista no artigo 14 do Estatuto de Roma, a pedido de um dos Estados-membros.
Ameaças de morte
A advogada da fundação contou que sofreu ameaças de morte, inclusive do exterior, em hebraico, além de ofensas e exposição de familiares. A ação, frisou, mexeu com estruturas de poder “tão sofisticadas” que ela foi orientada pelo Ministério dos Direitos Humanos a pedir inscrição no Programa Nacional de Proteção de Defensores dos Direitos Humanos e a se ausentar do domicílio onde mora.
Apesar disso, ela celebrou que o fato de uma autoridade do judiciário brasileiro ter determinado a abertura de uma investigação com base na jurisdição universal, num contexto de extraterritorialidade, a partir da ação de uma organização governamental.
"Enquanto não tivermos consequências diante de tanta brutalidade que está sendo perpetrada contra a população civil palestina, isso coloca a humanidade toda em risco e os setores mais vulneráveis da humanidade", disse a advogada.
O caso, que repercutiu internacionalmente, levou o Ministério das Relações Exteriores de Israel a fazer reunião de gabinete da crise, contou ela.
"Acho muito emblemático que a síntese que se fez desse episódio em Israel foi de orientar os soldados a não publicar os próprios crimes de guerra [...] Tem ampla adesão popular a empreitada genocida, então não surpreende que a síntese que se faça é não publiquem seus crimes de guerra em vez de não cometam crimes de guerra".
O caso do chefe da propaganda nazista, Adolf Eichmann, que estava escondido na Argentina até ser capturado e extraditado para ser julgado em Jerusalém, foi citado pelas entrevistadas apontar que a jurisdição universal foi usada na ocasião por Israel.
"O direito internacional, a partir do caso do Pinochet, do ex-ditador chileno, tem evoluído numa perspectiva de garantir a não impunidade dos crimes mais graves internacionais", opinou a professora da Universidade de Brasília.
Afinal, Brasil pode ou não julgar o soldado?
O STJ já julgou que crimes contra a humanidade no ordenamento brasileiro estão previstos no Estatuto de Roma e o STF reafirma sua plena vigência no ordenamento jurídico brasileiro.
O Brasil ratificou o Estatuto de Roma em 2002 e em 2004, o governo federal mandou para o Congresso um projeto de lei para regulamentar o estatuto e tipificando crimes dentro da legislação interna que corresponderiam aos crimes de guerra, contra a humanidade e de genocídio. Mas o projeto não foi aprovado.
Segundo as entrevistadas, o soldado pode, sim, ser julgado no Brasil com base no princípio de jurisdição universal, que permite que um país julgue crimes graves crimes contra a humanidade, crime de genocídio, crime de guerra e crime de agressão, independentemente de onde tenha ocorrido ou da nacionalidade da vítima e do acusado.
"Então não precisa ter essa ligação com o fato da nacionalidade nem da territorialidade, ou seja, de onde ocorreu o crime".
O processo penal brasileiro, permite prisão preventiva para esse tipo de crime para evitar fugas, o que não ocorreu no caso do soldado de Israel porque não houve pedido do Ministério Público Federal.
Caneparo alertou que a jurisdição no caso brasileiro tem limitações devido à falta de legislação para aplicação desse princípio de direito internacional e do exercício de jurisdição se porventura alguém que cometeu um crime internacional se encontrar em solo brasileiro.
"O direito internacional do Brasil é defasado [...] é tratado como um direito de segunda classe, infelizmente, e por consequência acaba gerando esses pandemônios, por exemplo, de se questionar a jurisdição universal", afirmou, ao citar ainda a resistência e medo de tribunais em assumir competência sobre crimes ocorridos fora do país.
A falta de uma legislação clara e precisa sobre a aplicação da jurisdição universal também prejudica uma presença e postura mais ativa e competente do Brasil nesse cenário internacional, acrescentou, ao lamentar que a polarização da sociedade brasileira leve a demonização e mesmo ataques a quem está no exercício legal de demandar direitos, como ocorreu com Pinheiro.
Já Pinheiro defendeu que a primazia dos direitos humanos, que também é um princípio constitucional brasileiro, deve prevalecer na hora de julgar um genocídio contra esses soldados e demais envolvidos em crime de guerra.
"Esse tipo de consequência é essencial para que o direito internacional não vire letra morta. Então eu entendo quem diverge, mas eu discordo de quem diz que a gente não pode aplicar uma norma dessa relevância para manutenção do equilíbrio nas relações entre as nações", disse Pinheiro.
As entrevistadas foram uníssonas ao afirmarem que esse é um dos casos mais emblemáticos da aplicação do princípio da jurisdição universal em solo brasileiro e marca um avanço significativo na luta contra a impunidade desses tipos de crimes.
A certeza de impunidade sob a chancela dos EUA, de acordo com a professora, foi arranhada com a ação no Brasil.
"Eles [Israel] podem ser julgados por qualquer jurisdição nacional e eles fugirem desses países é justamente um carimbo", argumentou. "Essa movimentação inicial, inclusive do Brasil, vai fazer com que eles pensem duas vezes antes de sair de Israel a partir de agora", comemorou Caneparo.
Este é o caso mais singular desse tipo em solo brasileiro, afirmou Squeff, também citando o princípio da jurisdição universal, que permite que os Estados possam exercer sua jurisdição penal para combater crimes mais graves que assolam a humanidade.
Atualmente, brasileiros e israelenses não precisam de visto de turismo pela lei da reciprocidade. Squeff sugeriu que uma possível medida que poderia ser adotada pelo governo brasileiro seria a de, temporariamente, solicitação de visto de Israel.
"De modo que, ao se fazer uma investigação, tendo ali algum tipo de processo aberto contra essa pessoa, mesmo para títulos de verificação, por exemplo, de cometimento de delito, como um crime de guerra contra a humanidade, genocídio, isso poderia fazer com que essa pessoa não viajasse ao Brasil."
Por Sputinik Brasil
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