Internacional

Guerra no Oriente Médio, 1 ano: Com cesáreas sem anestesia e recém-nascidos subnutridos, palestinas pagam alto preço

Mais de 11 mil mulheres foram mortas durante o conflito, e 39% relataram ter sofrido violência doméstica ao menos uma vez

Agência O Globo - 08/10/2024
Guerra no Oriente Médio, 1 ano: Com cesáreas sem anestesia e recém-nascidos subnutridos, palestinas pagam alto preço
Guerra no Oriente Médio, 1 ano: Com cesáreas sem anestesia e recém-nascidos subnutridos, palestinas pagam alto preço - Foto: Reprodução/internet

"Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma 'voz masculina'", reflete a Nobel de Literatura Svetlana Alexijevich nas primeiras páginas de um dos seus mais famosos livros, "A guerra não tem rosto de mulher", escrito a partir de relatos femininos da Segunda Guerra Mundial. Embora décadas separem os dois acontecimentos, grande parte do que vem a público sobre o conflito na , que completa um ano nesta segunda-feira, também são informações sem gênero. Um relatório da organização internacional ActionAid, porém, revelou as consequências ocultas da ofensiva israelense na vida das palestinas — de cesáreas sem anestesia devido ao colapso no sistema de saúde, a um ambiente de completa insegurança dentro de abrigos superlotados e bebês que já nascem subnutridos na esteira da subnutrição de suas mães.

Cerca de 42 mil pessoas foram mortas durante os confrontos na Faixa de no último ano, entre elas mais de 11 mil mulheres. De acordo com estimativas das Nações Unidas, 37 mães são mortas diariamente no enclave, e até 25 mil menores perderam ao menos um dos pais.

Nova frente de batalha:

Guga Chacra:

Violência de gênero na guerra

Além das vítimas fatais e dos milhares de feridos, a guerra provocou uma profunda crise de deslocamento para os cerca de 2 milhões de sobreviventes — muitos, obrigados a migrar de abrigo mais de uma vez. Os constantes deslocamentos têm um peso ainda maior sobre as mulheres, que relataram uma enorme perda de privacidade e segurança, sendo vítimas de assédio e abuso em acampamentos superlotados, aponta o relatório "Agentes de mudança: O papel das organizações lideradas por mulheres da Palestina na crise", da ActionAid.

— No passado, as paredes eram nossa proteção. Hoje, é apenas um pedaço de náilon — relatou uma palestina ouvida pela organização.

De acordo com o documento, divulgado em primeira mão no Brasil pelo O GLOBO, 39% das palestinas sofreram ao menos uma forma de violência doméstica após a guerra, com 14% relatando terem sido vítimas de agressões físicas e 18%, de abuso financeiro. Segundo a ActionAid, conflitos como Gaza são propícios para "ameaças crescentes de estupro, feminicídio, casamento forçado, exploração e desapropriação da vida, do corpo e do território das mulheres".

ONU:

O ambiente de instabilidade causado pelos deslocamentos frequentes tem incentivado homens a impor o casamento forçado às meninas de suas famílias como um "mecanismo de sobrevivência" em meio à falta de alimentos, fechamento de escolas e o temor de que sejam vítimas de violência sexual nos abrigos.

— Casamento precoce! Nenhuma lógica está ajudando as pessoas [a entenderem], não conseguimos alertá-las para que não façam isso. Os homens pensam em proteger suas meninas por meio do casamento. Mesmo que ela tenha sido abusada sexualmente quando casada, é melhor do que quando não está casada — relatou Buthaina, diretora da Wefaq Association for Women and Childcare, ONG palestina que apoia mulheres em Gaza.

Mesmo diante dessas condições, elas têm assumido jornadas dobradas de trabalho em campos de deslocados, que vão desde a funções fisicamente desgastantes, como carregar enormes baldes de água e cozinhar em fogueiras abertas, até se encarregarem de responsabilidades adicionais de cuidado. Em meio à escassez de alimentos, depoimentos do relatório destacam que muitas têm optado por comer por último e em menor quantidade para garantir que toda a família esteja alimentada.

— A pior coisa que as mulheres fazem é se colocarem em último lugar em tudo, as últimas da lista, despriorizando a si mesmas e cuidando dos outros — comenta Hala, membro da Alianza por la Solidaridad, organização humanitária espanhola parceira da ActionAid.

Na , que viu uma escalada das tensões após a eclosão da guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas, a situação também é dramática. Segundo o documento, palestinas sofrem com a violência tanto de soldados israelenses quanto de colonos, que muitas vezes demolem arbitrariamente residências na região. Em um dos depoimentos coletados pela organização, uma ativista de Hebron disse que viu uma vizinha ser “levada para dentro de uma sala [por soldados israelenses], todas as suas roupas [foram] tiradas e [eles] deixaram [um] cachorro atacá-la na frente do marido e dos filhos”.

— É terrível que essa guerra tenha continuado por tanto tempo sem um cessar-fogo. Estamos extremamente preocupados com as mulheres e meninas com quem trabalhamos em Gaza, bem como na Cisjordânia, que está se tornando mais perigosa e volátil a cada dia — conta ao GLOBO Riham Jafari, coordenadora de Advocacy e Comunicações da ActionAid Palestina.

Colapso na saúde

A destruição quase total do sistema de saúde em Gaza também representa um duro golpe às palestinas. Segundo a ONU, há cerca de 155 mil mulheres grávidas ou amamentando no enclave. Embora estimativas apontem que 183 mulheres deem à luz todos os dias, com um bebê nascendo a cada dez minutos, apenas dois dos 12 hospitais parcialmente em funcionamento hoje têm uma maternidade — antes do conflito, 36 estavam operando. Nesse cenário, as mulheres são forçadas a parir sem os cuidados devidos, incluindo cesarianas e operações de emergência "sem esterilização, anestesia ou analgésicos".

Por outro lado, a escassez de alimentos e a falta de atendimento pré-natal elevou o número de abortos espontâneos, partos prematuros e complicações. De acordo com Adnan Radi, consultor e chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital al-Awda, há bebês já nascendo com desnutrição:

— A fome afeta negativamente muitas mulheres grávidas, e as crianças ficam desnutridas desde o nascimento.

Vídeo:

Sem o fornecimento suficiente de contraceptivos, o risco de gravidez indesejada também aumentou, segundo a ActionAid. Mesmo outros métodos além dos preservativos e das pílulas, como o DIU, são difíceis de serem adotados.

— A inserção de um DIU não é possível devido à falta de esterilização dos materiais necessários para o médico inseri-lo. A esterilização e a limpeza são limitadas e indisponíveis, levando à disseminação de infecções — pontua Feryal Thabet, gerente de um centro de saúde para mulheres.

Outra face da crise sanitária no enclave são as condições de higiene às quais as mulheres estão submetidas nos abrigos. Segundo a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), 690 mil mulheres e meninas menstruam em Gaza. A falta de acesso a absorventes e produtos de limpeza, porém, tem sido uma preocupação. Segundo especialistas da ONU, aquelas que conseguem acesso a pílulas anticoncepcionais têm feito uso contínuo para evitar menstruar em condições anti-higiênicas. Outras precisam enfrentar banheiros compartilhados com centenas de pessoas.

— No momento, a falta de produtos de higiene é um grande problema. Nossos parceiros estão distribuindo kits de higiene repletos de itens essenciais, como sabonete, shampoo e produtos para menstruação — contou Jafari à reportagem, explicando que também são distribuídos alimentos e roupas, transferências em dinheiro para mulheres comprarem diretamente o que precisam.

Entenda:

Lugar na mesa

Por outro lado, sem um cessar-fogo no horizonte para o conflito que já dura 365 dias, as consequências podem ser ainda maiores para elas.

— No curto prazo, estamos extremamente preocupados com a chegada do inverno [verão no Hemisfério Sul]. Mulheres e meninas já estão gravemente debilitadas pela desnutrição e não têm roupas quentes nem abrigo adequado contra a chuva e o frio que se aproximam, o que as deixará mais suscetíveis a doenças e enfermidades — destacada Jafari. — Em longo prazo, as meninas de Gaza perderam um ano inteiro de educação, e toda a população sofreu um trauma profundo. Isso terá consequências graves para o futuro delas.

Por isso, pontua a coordenadora, "suas vozes e perspectivas não podem ser deixadas de lado" no dia seguinte do conflito:

— Chegou a hora de as partes interessadas locais e internacionais valorizarem a contribuição essencial das mulheres, aumentando o financiamento para organizações lideradas por mulheres e garantindo que elas tenham um lugar à mesa quando decisões cruciais sobre a Palestina e seu futuro estiverem sendo tomadas.