Internacional

Como o massacre de jovens soldados no ataque do Hamas virou símbolo dos fracassos de 7 de outubro para Israel

Meses antes do atentado terrorista no sul israelense, mulheres que trabalhavam na unidade de observação emitiram alertas sobre atividades cada vez mais suspeitas na região da fronteira, mas foram ignoradas

Agência O Globo - 08/10/2024
Como o massacre de jovens soldados no ataque do Hamas virou símbolo dos fracassos de 7 de outubro para Israel
Como o massacre de jovens soldados no ataque do Hamas virou símbolo dos fracassos de 7 de outubro para Israel - Foto: Reprodução/internet

Eram cerca de 6h30 da manhã de 7 de outubro de 2023 quando dezenas de homens fortemente armados apareceram na tela de vídeo da jovem Maya Desiatnik, soldado israelense encarregada de monitorar o trecho da fronteira com a . Aos 19 anos à época, ela pegou o rádio ao seu lado e soou o alarme avisando: membros do grupo terrorista haviam invadido o território. Ao Wall Street Journal (WSJ), ela disse ter feito repetidos alertas aos seus superiores nas semanas que antecederam o ataque — assim como suas colegas na unidade de observação, todas elas ignoradas.

Guerra no Oriente Médio, 1 ano:

Guerra no Oriente Médio, 1 ano:

Quando seus temores tornaram-se realidade, portanto, elas não sabiam o que fazer. Mais de 150 integrantes do grupo palestinos invadiram a base, a cerca de 800 metros de , e nenhuma ajuda veio. Ao todo, 50 soldados da base de Nahal Oz, incluindo 15 jovens que trabalhavam como observadoras da fronteira, foram mortos a tiros ou queimados vivos. Sete observadoras foram levadas como reféns para o enclave. A falha do Estado judeu em ouvir os avisos dessas mulheres, que serviam desarmadas em Nahal Oz, as transformou num símbolo dos erros de Inteligência e militar do país em 7 de outubro.

Um ano depois, o massacre, que matou mais de 1,2 mil pessoas e resultou em cerca de 250 reféns, ainda está fresco em . A guerra que se seguiu matou mais de 44 mil palestinos e, a cada dia, parece arrastar mais o Oriente Médio para um conflito total. Dezenas de israelenses ainda estão detidos em Gaza, e mais de 60 mil moradores do norte de Israel vivem como deslocados, após fugirem de suas casas na região, frequentemente alvo de ataques do grupo xiita libanês Hezbollah. Agora, familiares das mulheres mortas e sequestradas na base de Nahal Oz se sentem traídos e exigem a responsabilidade do governo.

Essas observadoras faziam parte de um grupo especializado, composto inteiramente por mulheres, cuja função era vigiar as áreas de fronteira de Israel. Elas trabalhavam em turnos para monitorar as telas com imagens de vídeo da fronteira. O serviço era exigente, e, se precisassem parar para comer ou ir ao banheiro, outras precisavam substituí-las. De lá, elas puderam ver, meses antes do ataque, diversas atividades suspeitas. Ex-observadoras disseram ao WSJ que multidões de palestinos, alguns armados, apareciam regularmente na cerca da fronteira, onde incendiavam pneus, bloqueavam câmeras e, por vezes, tentavam invadir.

— Eu os vi simulando tudo. Eles corriam e depois rastejavam. E nós alertamos sobre tudo — disse ao jornal americano Omer Keinan, agora com 21 anos, uma observadora que disse ter visto o que parecia ser um exercício de treinamento do Hamas dentro de Gaza que incluía a simulação de como capturar prisioneiros.

Análise:

Na época, muitas dessas jovens compartilharam suas preocupações com seus pais. Elas diziam acreditar que uma guerra ou operação estava prestes a acontecer. Yael Kochavi, 20 anos, uma suboficial encarregada de supervisionar o trabalho das observadoras, compilava relatórios diários de Inteligência para seus superiores ao final de cada turno, com fotos e vídeos de eventos incomuns. Duas semanas antes do ataque, disse, a frequência de eventos irregulares era maior do que ela tinha visto em mais de um ano e meio de serviço. Kochavi chegou a ligar para superiores, mas disseram a ela para não se preocupar — e ela confiou.

Funcionários de Inteligência, tanto atuais quanto ex, disseram que, nos últimos anos, os militares tendiam a ver as observadoras mais como guardas de segurança e se concentravam em outras fontes mais avançadas, como as da unidade de elite 8200 de Israel. Os avisos das soldados geralmente não eram repassados às altas patentes militares ou à comunidade de Inteligência, relataram eles ao WSJ.

O ataque

Quando as sirenes começaram a soar e o Hamas lançou barragens de foguetes às 6h29 do dia 7 de outubro do ano passado, nove observadoras que não estavam de plantão na sala de situação correram para um abrigo antiaéreo da base, que tinha um chão de terra e paredes de concreto. Muitas ainda estavam de pijama. Em um vídeo gravado por Daniel Gilboa e enviado para o namorado dela naquela manhã, as mulheres podiam ser vistas aglomeradas, falando entre si e com medo. Explosões eram ouvidas ao redor delas.

Guga Chacra:

Logo, membros do Hamas invadiram a base no deserto, que tem cerca de 260 metros de comprimento e 150 metros de largura, com fileiras de alojamentos e outros edifícios. Alguns soldados de combate que estavam lá resistiram, mas muitos foram rapidamente mortos, publicou o jornal americano. O médico de combate Koby Levy, 23 anos, disse que começou a ouvir disparos por volta das 6h45. Ele relatou ter passado as horas seguintes lutando contra integrantes armados com granadas e Kalashnikovs. Diante do número esmagador de militantes palestinos, porém, ele se escondeu atrás de um arbusto.

Dentro do abrigo antiaéreo, as mulheres enviaram mensagens de despedida para seus pais. “Não sei o que vai acontecer, mas amo vocês”, escreveu Noa Price para sua mãe às 7h30, usando o telefone de uma colega. Shahaf Nisani enviou ao pai uma selfie dela mesma escondida no abrigo com outra amiga por volta do mesmo horário. “Cuide da mamãe e de todos, se eu não sair dessa”, escreveu. Integrantes do Hamas jogaram granadas no abrigo, ferindo algumas delas. Depois, entraram e começaram a atirar.

Um vídeo gravado por um membro do grupo terrorista naquela manhã e depois recuperado por soldados israelenses mostrou o resultado: sete jovens mulheres ensanguentadas, mas ainda vivas, amarradas contra a parede do abrigo, diante dos corpos de sete de suas amigas mortas. Essas meninas, seriam posteriormente forçadas a entrar em caminhonetes e levadas para Gaza, onde acredita-se que ainda estejam vivas como reféns. Entre as mortas estava Shahaf Nisani, uma soldada de cabelos cacheados que estava servindo seu último fim de semana na base antes de concluir o serviço militar.

Sob disparo de foguetes do Hamas:

Desiatnik se escondeu atrás de barricadas de concreto com vários soldados que também haviam escapado, na esperança de que outras observadoras aparecessem, mas ninguém veio. Terroristas incendiaram a área — e, quando o calor e a fumaça se tornaram insuportáveis, eles se moveram para outro esconderijo, até que reforços chegaram, horas depois. Levy disse que pôde avaliar a extensão dos danos à base pela primeira vez quando foi resgatado por tropas israelenses que chegaram por volta das 16h. A base estava coberta de corpos. Carros e prédios estavam queimados ou em chamas, publicou o WSJ.

Um sargento-mor que chegou a Nahal Oz em 8 de outubro para recuperar corpos avisou seus soldados para não olharem para os rostos, pois poderia ser alguém que conheciam. Muitos dos cadáveres que ele viu tinham ferimentos de bala no torso. Uma foto que ele tirou, vista pelo Wall Street Journal, mostrou o corpo queimado de uma jovem deitada nos restos de um colchão. Outra jovem foi encontrada morta atrás de um banco, vestindo pijamas do Mickey Mouse. Alguns corpos eram pouco mais que ossos esbranquiçados pelas altas temperaturas e levariam semanas para serem identificados.

Buscando a verdade

Nas semanas após 7 de outubro, quando a filha de Eyal Eshel, Roni, ainda estava classificada como desaparecida, ele ficou frustrado com a falta de respostas das autoridades sobre o que havia acontecido. Ele começou sua própria investigação, conversando com sobreviventes, oficiais militares e qualquer outra pessoa que conseguisse encontrar. Foram necessários 34 dias para as autoridades identificarem a filha dele em um laboratório forense. Especialistas disseram que os corpos foram incinerados a temperaturas semelhantes às de crematórios.

No aniversário de um ano do ataque contra Israel:

As famílias descobriram que as jovens não tinham extintores de incêndio na sala de monitoramento, e que as que estavam de serviço estavam vivas até pelo menos por volta das 11h30, quando alguns pais receberam ligações. Elas poderiam ter sido salvas se os socorristas tivessem chegado a tempo, dizem Eshel e outros pais. Os sobreviventes disseram que nunca se prepararam para um cenário de invasão de base, então não sabiam o que fazer.

Outras informações que surgiram após 7 de outubro apontam para falhas mais amplas. O Exército israelense descobriu mapas detalhados do Hamas de várias bases, e alguns vídeos da invasão foram usados como propaganda nos grupos do Telegram do grupo. Autoridades ignoraram sinais de perigo, como vídeos publicados nas redes sociais pelo Hamas que mostravam a organização realizando exercícios de treinamento antes do ataque. A maior parte dos recursos das unidades israelenses tinham sido direcionadas para a fronteira norte do país para lidar com o Hezbollah, visto como uma ameaça mais séria do que o Hamas.

Apesar da insistência do procurador-geral israelense de que uma comissão de inquérito deve ser instaurada, isso ainda não aconteceu. O primeiro-ministro de Israel, , disse que as investigações devem ocorrer apenas após o fim da guerra. Alguns alegam que ele deseja adiar descobertas que possam ser desfavoráveis. Hoje, o Exército conduz sua própria investigação sobre o que ocorreu em Nahal Oz para estudar seu desempenho — e prometeu tornar os resultados públicos. Mas os pais querem uma investigação mais ampla e independente conduzida pelo Estado.

Uma das sete mulheres sequestradas foi resgatada pelas forças israelenses em Gaza. O corpo de outra foi encontrado e trazido de volta. As outras cinco foram vistas vivas, embora feridas, por reféns que foram libertados no acordo de cessar-fogo de novembro. Mais de 10 meses depois, as famílias estão preocupadas com as chances de sobrevivência delas. As negociações entre Israel e Hamas para alcançar uma troca de reféns por um acordo de cessar-fogo colapsaram nos últimos meses.