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Para não metermos os pés pelas mãos

Dartagnan Zanela 04/10/2024
Para não metermos os pés pelas mãos
Dartagnan - Foto: Arquivo

Todos conhecemos a sentença de Nelson Rodrigues em que ele afirma que toda unanimidade é burra. Na verdade, essa afirmação é mais do que uma sentença; é uma salutar advertência para que estejamos sempre, sempre mesmo, com um pé atrás, quando estivermos andando em conformidade canina com aquilo que a vontade geral estufa o peito para dizer, e que a opinião pública reverbera histericamente, para que ninguém ouse levantar a voz para contrariar.

Toda vez que nos flagrarmos nessa sintonia é necessário que procuremos nos recolher junto ao fundo insubornável do nosso ser, na alcova da nossa consciência, para refletirmos de forma serena a respeito dos caminhos que estamos trilhando e, trilhando-o, convidando os nossos semelhantes a fazerem o mesmo.

E isso é tão importante quanto salutar porque, como bem nos lembra o cientista político Alexander Dunlop Lindsay, toda unanimidade não é apenas estulta, mas também e principalmente perigosa.

Sobre esse ponto temos um exemplo deveras curioso que nos é apresentado por Walter Scott que, em seu livro “A vida de Napoleão”, descreve-nos o chamado “liberum veto”. Este era um arranjo através do qual um cavalheiro podia anular a decisão de toda uma assembleia. O “liberum veto”, nesse sentido, era um mecanismo que procurava garantir a unanimidade em todas as decisões que fossem tomadas. Bacana, não é mesmo? De jeito-maneira.

Era muito comum, nos lugares onde esse mecanismo era utilizado, ter-se o assassinato dos discordantes para se poder garantir a dita-cuja da unanimidade. Há inclusive um caso muito curioso que ocorreu na Polônia no século XVII, onde João Sobieski, para contornar a oposição, marcou o início da reunião da Dieta com uma hora de antecipação sem, é claro, comunicar os membros da Assembleia que eram contrários à matéria que seria votada.

E tem mais! Para garantir que tudo ocorreria nos conformes, as portas foram devidamente trancadas.

Pois bem, um dos dissidentes, ao saber disso, adentrou o salão pela chaminé da lareira e, quando foi realizada a votação, o abençoado colocou a cabeça para fora da lareira e pronunciou o seu veto. Ao ouvirem o seu voto, todos esmoreceram; porém, um dos nobres sacou sua espada e, com um só golpe, decapitou o discordante, garantindo assim a tal da unanimidade que era requerida naquele momento.

Por essa e por inúmeras outras razões a procura pela unanimidade acaba sendo, sempre, a base de toda ação de caráter autoritário e de todo projeto totalitário. Almas tomadas por esse tipo de peçonha não suportam a possibilidade de serem contrariadas. Ou se é unânime, ou não será nada.

Claro, na sociedade atual, muitos dirão que não temos presente a procura por esse tipo de unanimidade absoluta. Verdade. Entretanto, temos a busca incansável por uma unanimidade relativa, que é obtida não pela concordância da maioria, mas sim, através da censura, velada ou descarada, de todas as discordâncias substanciais que por ventura sejam levantadas contra os disparates dos donos do poder e de seus asseclas. Aí, nesse cenário, entra em ação toda ordem de subterfúgios, que vão desde o uso dos enxames digitais, muito bem descritos pelo filósofo Byung-Chul Han, até os vetustos assédios morais.

Quanto às discordâncias irrelevantes, sobre pontos de importância menor, essas são toleradas, até mesmo instigadas, para dar aquele ar de “normalidade”, de “pluralidade postiça” e, deste modo, engambelar os olhares distraídos que, diga-se de passagem, no mundo atual, não são poucos.

Por isso, a democracia não combina com unanimidade, seja ela relativa ou absoluta. É a divergência substancial que nos faz ver o que, por hábito, não costumamos prestar a atenção; é a divergência que nos move a renovarmos nossos pontos de vista e a fortalecermos os nossos princípios; é a discordância que nos leva a vislumbrarmos possibilidades que até então eram ignoradas por nós.

Enfim, quando passamos a confundir a fidelidade a um partido político com a lealdade a ordem democrática, quando misturamos a necessária estabilidade das instituições com a intocabilidade daqueles que as ocupam, quando imaginamos que as críticas ao sistema, as autoridades, a imprensa e ao Estado seriam ataques contra a democracia, é sinal de que já não mais sabemos a diferença abissal que há entre totalitarismo e democracia; é sinal de que ignoramos que abuso do poder e exercício da autoridade são coisas de natureza totalmente diferentes.

É isso. Fim de causo.