Alagoas
Policial militar transforma folia em solidariedade e vira destaque em programa da Rede Globo
Da folia à solidariedade e da solidariedade à utilidade pública. As fileiras da Polícia Militar de Alagoas (PM-AL), especialmente no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), localizado em Maceió, guardam a história que, embora não fosse nenhum segredo, ganhou destaque em rede nacional no mês de setembro. Por trás da farda de um combatente, existe um agente de transformação social cuja equipe tem gerado um impacto de esperança no Litoral Norte Alagoano.
Situada na paradisíaca Praia do Patacho, mais precisamente no Povoado Lages, em Porto de Pedras revelou-se uma trajetória que começou como um bloco carnavalesco, movido pela alegria e descontração e evoluiu para algo maior: uma entidade de utilidade pública estadual que, hoje, tem a solidariedade como um verdadeiro estandarte. A iniciativa foi além dos dias de folia e deu origem à Organização Não Governamental (ONG) Filhos do Patacho, presidida pelo sargento da PM-AL, Juciano.
O presidente da ONG — e um dos principais responsáveis pela iniciativa — cresceu como filho de pescador e auxiliar de dentista, sendo o caçula de uma família de quatro filhos. O pai, João Bento, hoje pesca por esporte e gerencia sua própria peixaria em Porto de Pedras. A mãe, Edna Pinto, a Dona Edinha, desfruta da aposentadoria. Ambos orgulham-se e apoiam a trajetória do filho. Juciano Pinto da Silva, atualmente com 40 anos, também é 3º sargento da Polícia Militar. Serviu ao Exército Brasileiro por sete anos e chegou a ser cabo; posteriormente, atuou exclusivamente como empresário por dois anos, até ingressar na Corporação em maio de 2012, após ser aprovado no concurso de 2006. Enquanto aguardava o início do Curso de Formação de Praças (CFP), foi lotado no CFAP, onde desempenhou funções administrativas.
Após concluir o CFP, permaneceu na unidade-escola, a pedido de seus superiores, que não abriram mão de sua permanência. Ele havia criado fortes vínculos e se destacava pelo dinamismo e serviço com excelência, tornando-se indispensável. Ao longo de mais de uma década tem sido essencial na formação e aperfeiçoamento de milhares de militares, contribuindo para diversas turmas e cursos. A vida como sargento e presidente se divide entre a capital e as raízes. Passa a semana em Maceió e vai para o Litoral Norte nos finais de semana — quando a maior parte das atividades da ONG acontece e onde seus pais vivem.
Para o Brasil inteiro ver
A ONG ganhou projeção em rede nacional no dia 8 de setembro dentro do quadro The Wall, no programa Domingão com Huck, da Rede Globo. Misturando sorte e conhecimento, o quadro é um jogo onde os participantes enfrentam uma grande parede. Numa sequência de perguntas de múltipla escolha, bolas caem da parede em direção a prêmios em dinheiro. A cada acerto, as bolas caem por um tabuleiro com valores variados. A cada erro, porém, as bolas caem, mas retiram um valor específico da quantia acumulada. O valor máximo do prêmio é de R$ 1,7 milhão.
Sem muita pretensão, Juciano fez a inscrição no site, contou toda a história dos Filhos do Patacho e ficou surpreso quando, cerca de seis meses depois, recebeu a ligação da produção do programa. Após todos os trâmites, reuniões e gravações, chegou o dia da gravação nos estúdios da Rede Globo. A dupla formada por Juciano e pelo secretário da ONG, Laelson Sales, conseguiu levantar R$ 282.679 para a entidade. O objetivo era arrecadar R$ 300 mil para a aquisição de um terreno destinado à construção da sede da ONG, atualmente instalada nas dependências da colônia de pescadores.
Os frutos colhidos continuam a chegar: além de ampliar o número de seguidores do perfil @ongfilhosdopatacho no Instagram, pessoas de todo o país entraram em contato.
“Só coisas boas aconteceram. Recebemos uma doação de uma pessoa do Paraná que se ofereceu para construir nosso site porque não tínhamos um. Uma empresária de São Miguel dos Milagres foi nos conhecer e abriu as portas do empreendimento dela para empregabilidade e para a construção. Outro empresário local se comprometeu com a doação do terreno”, comemorou Juciano.
A ONG vem numa sequência de conquistas. Outro grande reconhecimento ocorreu no final do ano passado, publicado no Diário Oficial de 18 de dezembro de 2023. A Lei nº 9.108, de 15 de dezembro de 2023 considera de Utilidade Pública Estadual. O título de utilidade pública estadual é uma concessão que reconhece a prestação de serviços à sociedade por instituições sem fins lucrativos.
Do “Facão” aos Filhos do Patacho
A ideia do bloco nasceu em 2010, quando seu idealizador ainda era do Exército. Como no povoado só havia um bloco durante os quatro dias de Carnaval, um grupo de amigos decidiu criar uma nova opção, estendendo a brincadeira. Em 2011, o projeto saiu do papel e ganhou as ruas do povoado, contando com o apoio de alguns patrocinadores locais.
A brincadeira precisaria de um nome. Decidiram homenagear uma figura marcante na vida dos amigos. O senhor, conhecido nas redondezas como Velho do Facão, que havia falecido naquele ano, vítima de acidente de motocicleta. “Toda vez que ele ia para a roça, passava pela gente com um facão na cintura. Era a marca dele. Como ele havia falecido recentemente, decidimos prestar essa homenagem”, relembrou.
A estreia foi sucesso. Os 50 abadás confeccionados esgotaram, mas após a festa, surgiu o questionamento: “como utilizar a parte do dinheiro das vendas que havia sobrado?”. Veio a ideia de fazer cestas básicas e distribuir para a comunidade. Assim, o grupo começou a selecionar as famílias mais necessitadas.
O turismo é uma das principais fontes de renda nessa região do estado. De acordo com o Panorama divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o Produto Interno Bruto per capta, divulgado no ano de 2021, era de R$ 43.738,21. Por outro lado, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) calculado em 2010 era de 0,541, considerado baixo. Apesar do grande potencial turístico, das belezas naturais e riqueza cultural, Porto de Pedras enfrenta desafios em termos de infraestrutura e desenvolvimento social.
“Mesmo nascidos e criados ali, ao entregarmos as cestas de casa em casa, percebemos o quanto nossa comunidade era mais carente do que imaginávamos”. Muitas famílias viviam abaixo da linha da pobreza. Isso nos motivou a dar continuidade, no ano seguinte, e pudemos distribuir uma quantidade ainda maior de alimentos. Até então continuávamos na intenção de seguir com o trabalho solidário, mas como parte de uma diversão. Depois começamos a promover a festa das crianças no povoado, com o mesmo grupo de amigos. Lanches e brincadeiras como pau-de-sebo, quebra-pote, corrida de saco, dentro dos recursos disponíveis. Simples, mas fez a alegria da criançada. Nunca mais paramos”, completou Juciano.
Expandindo a esperança
O ano de 2015 trouxe dois grandes marcos. O primeiro foi a realização de um sonho de criança do menino Juciano voltado para outros meninos e o segundo foi a formalização.
“Era um sonho pessoal porque sempre gostei de futebol. Participava daqueles joguinhos de rua, mas nunca tive oportunidade de jogar em uma escolinha. Conseguimos fundar nossa escolinha de futebol e hoje atendemos aproximadamente 100 crianças e adolescentes com idades entre 5 e 17 anos, totalmente gratuita no campo do nosso povoado. A gente pensa no futuro deles. O mercado do futebol é difícil, poucos chegam a ser jogadores profissionais, mas eles serão cidadãos de bem, com perspectiva de futuro”, ajuizou o agente de mudança. “Nesse mesmo ano, já vínhamos desenvolvendo uma série de trabalhos como o esporte, doação de cestas e de sangue, festas das crianças, Natal na comunidade e campanhas solidárias. Então decidimos que era o momento de formalizar, criar um CNPJ e assim fizemos”, diz.
Durante esse tempo, o bloco ganhou ainda mais notoriedade, consolidando-se como parte do calendário festivo da região e atraindo um número crescente de nativos e turistas. A organização percebeu que, embora o nome fosse uma homenagem carregada de história, à primeira vista, “facão” podia ser interpretado como algo violento por quem via de fora e desconhecia a memória do antigo morador.
“Como já estávamos formalizados nessa época, reunimos a diretoria para escolher um novo nome. Num primeiro momento, nenhum dos sugeridos foi aprovado. Eu já morava em Maceió, e certo dia me acendeu uma luz. O povoado onde a ONG está localizada é originário da Praia do Patacho. Antigamente, na época dos nossos bisavós, ainda não existia o Povoado Lage, e sim o Povoado Patacho. Com o avanço da maré, tiveram que migrar para onde hoje é Lage. Por isso somos filhos do Patacho. E hoje nossa praia é a única de Alagoas e uma dentre poucas no Nordeste que detém o selo Bandeira Azul, um prêmio ecológico internacional”, disse o líder com orgulho.
“Com a chegada e o fortalecimento do turismo em Porto de Pedras, abrimos os olhos para a necessidade de oferecer cursos de capacitação profissional, pois, com os empreendimentos surgindo cada vez mais, nossa comunidade não estava preparada para ocupar as vagas de emprego. Os postos de trabalho acabavam sendo preenchidos por pessoas de fora, enquanto nossos moradores permaneciam desempregados por falta de qualificação”, recordou.
A ONG começou a se inscrever em editais para captar recursos e investir nessa nova frente de atuação. Os primeiros resultados logo apareceram. A Filhos do Patacho foi selecionada em um edital de um instituto em Brasília. Com o contrato assinado e a equipe motivada, o primeiro curso aconteceria e tudo indicava um futuro promissor — até que a pandemia de Covid-19 interrompeu os planos. Apesar disso, o coronavírus não foi capaz de barrar a força da solidariedade.
Sem abandonar a fé, Juciano rememora uma fase difícil, mas de esperança viva. “Deus é bom. E quando você faz o bem, as coisas boas vêm automaticamente”. Era preciso recobrar as forças em meio à calamidade. “Nossa comunidade sobrevive basicamente do turismo, agricultura, pesca e outras atividades, mas com a Pandemia, tudo fechado. O mesmo instituto nos auxiliou com uma quantia e pudemos fazer cerca de 900 cestas básicas ao longo de três meses. Sendo 300 cestas por mês. Nossa comunidade é pequena. Fizemos uma seleção junto aos dados da Assistência Social do município. No meio do caos, conseguimos ajudar nossa comunidade e levar alimentação. Temos relatos de pessoas dizendo que se não fosse a ONG elas e seus filhos poderiam ter morrido de fome”, lembrou emocionado também da ajuda enviada por mercadinhos e comerciantes locais também se uniram nesse propósito apoiando as ações da organização.
Após a pandemia, o edital foi reaberto e nos inscrevemos novamente. “Conseguimos a aprovação para o apoio financeiro por três anos, o que nos permitiu executar nossos cursos na área do turismo. Na primeira turma de Atendimento ao Público e Informações Turísticas, em 2022, 30 jovens se formaram. Entre 2023 e 2024, mais 60 alunos concluíram o curso, e, graças às parcerias, já conseguimos inseri-los no mercado de trabalho”, explicou. Em 2022, a ONG também recebeu recursos de uma emenda parlamentar, o que possibilitou a realização de um novo curso, desta vez de culinária comercial. Trinta e sete mulheres puderam se qualificar para empreender ou trabalhar em estabelecimentos como cozinheiras, por exemplo. A segunda turma, com mais 15 alunas, está em andamento.
Mãos unidas e à obra
Em 2020, durante um período chuvoso, chegou ao conhecimento da diretoria uma situação que comoveu a todos. Uma senhora vivia com suas duas netas pequenas em uma casa de pau a pique no povoado Tatuamunha. “Todas as vezes que chovia essa mulher pegava as netinhas e ia para o lado de fora da casa porque a estrutura de taipa estravala. A madeira estava podre, e havia muitas pingueiras no telhado. Com medo de a estrutura desabar sobre elas — mais tarde confirmamos ser um risco real —, chegavam a passar a noite no alpendre”, relatou.
O grupo foi até o local para conversar com a moradora e confirmar a história. A tristeza foi imensa ao perceber uma realidade era ainda pior da relatada. Foi impossível ficar indiferente ou inerte.
“Vamos construir uma casa de verdade para essa família. Mobilizamos o pessoal da ONG e fizemos uma campanha gigante na cidade. De início, conseguimos R$ 6 mil; não seria o suficiente, mas tomamos coragem e colocamos o projeto em ação. Primeiro, tiramos as três de lá e as colocamos em uma casa segura, não de taipa, mas de tijolos, alugada por nós. A mão de obra era 100% voluntária e, ao longo de um ano, fomos construindo durante os sábados e domingos, pois eram os dias em que os voluntários podiam ir. Enfim, entregamos a casa de alvenaria, com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, toda mobiliada com sofá e camas para as meninas, que antes nem tinham onde dormir. Foi na cara e na coragem, porque até hoje a gente se pergunta como conseguimos tudo aquilo”, ressaltou.
Esta é uma das incontáveis histórias que a ONG vivenciou e ajudou a transformar dentro da realidade local contando com o apoio de cidadãos, amigos de perto e de longe que somaram forças.
“Aqui começa”
O lema do CFAP, onde o sargento Juciano atua, é “Aqui começa a Polícia Militar”. Para ele, essa frase simboliza não apenas o início de sua carreira, mas também a continuidade de sua trajetória. A mesma unidade que o formou e onde ele serve desde a incorporação tornou-se uma apoiadora dos Filhos do Patacho. “O CFAP é nosso parceiro e sempre lembra da nossa ONG ao desenvolver ações solidárias, como a doação de alimentos”, afirmou, expressando sua gratidão.
Na visão do comandante do Centro de Formação, major Jefferson Canuto, “o sargento Juciano desempenha suas funções no CFAP com responsabilidade, celeridade, lealdade e elevado espírito de cumprimento de missão. A escola se sente honrada por ter em seu quadro um sargento comprometido com o serviço em si, muito atento e participante da vida intra e extramuros. Sou muito grato por tê-lo como comandado”.
Com extremo zelo, o porto-pedrense leva uma vida voltada ao serviço. Embora distintas, ele vê suas duas grandes missões de vida como complementares.
“O militarismo faz parte da minha vida desde os 18 anos, quando entrei para o Exército. Nesse percurso, nasceu a ONG e fui incorporado à PM. Acredito que essas missões se completam; nasci para ambas e amo tudo o que faço”, finaliza.
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