Internacional

Membro do CNE venezuelano diz a jornal que 'não recebeu evidências' da vitória de Maduro na última eleição

Declaração de Juan Carlos Delpino ao NYT é a primeira a ser feita por alguém do sistema eleitoral e foi veiculada no mesmo dia que principal candidato da oposição é convocado para depor

Agência O Globo - 26/08/2024
Membro do CNE venezuelano diz a jornal que 'não recebeu evidências' da vitória de Maduro na última eleição
Membro do CNE venezuelano diz a jornal que 'não recebeu evidências' da vitória de Maduro na última eleição - Foto: Reprodução/internet

Dias após o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) venezuelano validar o resultado divulgado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que declarou o presidente Nicolás Maduro como vencedor da última eleição presidencial, um membro do órgão eleitoral venezuelano disse que "não recebeu nenhuma evidência" de que o chavista de fato venceu a votação. Publicada nesta segunda-feira, a afirmação de Juan Carlos Delpino converge com a retórica da oposição e boa parte da comunidade internacional, mas é a primeira grande crítica feita de dentro do sistema eleitoral, de maioria chavista.

Delpino era um dos cinco membros do CNE, órgão encarregado de decidir a estrutura das eleições, além de receber e anunciar seus resultados. Advogado, foi selecionado em agosto para integrar o conselho, atuando como um dos membros alinhado à oposição dentro do CNE. Na época, muitos venezuelanos viram na seleção uma tentativa de dar ao órgão eleitoral um verniz de equilíbrio e legitimidade.

Quando foi selecionado, Delpino morava nos EUA e retornou à Venezuela para servir no conselho por "grandes níveis de comprometimento" com o processo democrático, segundo argumentou. A maioria no país acreditava que o conselho era controlado por Maduro, mas o advogado, um antigo membro de um partido de oposição chamado Ação Democrática, afirmou ter concordado em se juntar por acreditar que a "rota eleitoral" era o caminho para a mudança. Mas, ao declarar Maduro como vencedor sem evidências, o CNE "falhou com o país".

— Estou envergonhado e peço perdão ao povo venezuelano. Porque todo o plano que foi tecido, realizar eleições aceitas por todos, não foi alcançado — afirmou o advogado ao jornal New York Times.

Na manhã da votação, Delpino disse que acordou otimista e estava na sede do conselho eleitoral em Caracas às 6h. Mas, no fim do dia, quando percebeu que o presidente do CNE, Elvis Amoroso, iria anunciar uma vitória "irreversível" de Maduro sem provas, foi para casa, disse Delpino, em vez de participar da entrevista coletiva que anunciou a vitória do chavista. Naquela noite em que o CNE declarou o chavista vencedor das eleições, o advogado contou que decidiu parar de participar do conselho.

O CNE até o momento não apresentou as atas de votação (exigidas pela comunidade internacional, incluindo os mediadores da crise, Brasil e Colômbia; tampouco foram apresentadas pelo TSJ ao validar o resultado). A oposição, por sua vez, alega ter reunido mais de 80% dessas atas que, segundo afirmam, mostram a vitória do ex-diplomata com 67% dos votos. María Corina e González Urrutia lançaram um site poucos dias após a votação para hospedar esses comprovantes e torná-los públicos.

O advogado se recusou a dizer ao jornal se tinha os dados de votação recebidos pelo governo. Mas em uma mensagem que ele disse que planejava publicar no X após sua entrevista, Delpino citou uma longa lista de irregularidades que o levaram a "perder a confiança na integridade do processo e nos resultados anunciados". Entre essas regularidades estariam:

A recusa do CNE em divulgar os resultados máquina por máquina;

Alegações de testemunhas eleitorais de que foram expulsas das seções eleitorais quando estas fecharam, impossibilitando-as de supervisionar os momentos finais da votação;

Uma interrupção na transmissão eletrônica dos resultados das máquinas de votação para o centro de dados do conselho (isso poderia criar uma oportunidade para adulterar os dados);

A "falta preocupante" de reuniões do conselho nos meses anteriores à votação, o que fez com que Amoroso tomasse decisões "unilaterais" sobre o processo. Isso dificultou que Delpino se opusesse às políticas que inclinaram a eleição a favor de Maduro, como as barreiras ao registro no exterior.

Desde o dia da votação, Diosdado Cabello, um dos aliados mais poderosos de Maduro e vice-presidente do partido, acusou Delpino de fazer parte de um "pequeno grupo de terroristas" que hackeou o sistema eleitoral na tentativa de fraudar uma vitória para González Urrutia — acusação na qual os dois principais opositores são investigados. No mês anterior á votação, Delpino criticou a gestão do conselho eleitoral por Amoroso a um meio de comunicação local, o jornal Efecto Cocuyo , ajudando a destacá-lo como um alvo para o partido governista.

Alguns venezuelanos vinham pressionando Delpino a falar e o criticaram por levar semanas para fazê-lo. O advogado disse que estava se apresentando agora por um compromisso com a transparência. Nos anos em que Hugo Chávez e depois Maduro consolidaram o controle, alguns membros da oposição pressionaram por um golpe militar ou intervenção estrangeira. Delpino disse que, apesar de tudo o que viu nas últimas semanas, achava que as eleições eram a resposta para um futuro melhor.

— Acredito até hoje que a resposta para a Venezuela é democrática — defendeu, acrescentando: — A resposta é eleitoral. Com outro protagonista na CNE, claro, mas eu acredito nessa solução eleitoral.

O advogo concedeu a entrevista ao jornal americano de seu esconderijo, por temer retaliações do governo. Nas últimas semanas, as forças de segurança de Maduro prenderam qualquer um que parecesse duvidar de sua reivindicação de mais seis anos no poder, e muitos venezuelanos temem que suas forças estejam cruzando fronteiras para perseguir inimigos. A ONU estima que mais de 2,4 mil pessoas foram presas em meio à onda de repressão que recrudesceu frente aos protestos contrários à reeleição do chavista.

Ameaça de prisão

A divulgação da declaração de Depino ocorre no mesmo dia que o candidato da oposição Edmundo González Urrutia foi convocado para depor no Ministério Público, ação que o ex-diplomata considera não apresentar garantias de respeito ao devido processo legal. González Urrutia, que não aparece em público há três semanas, não deve comparecer à audiência marca para às 10h (11h no horário de Brasília), na sede do Ministério Público em Caracas.

"O procurador-geral da República (Tarek William Saab) tem se comportado reiteradamente como um acusador político. Condena por antecipação e agora promove uma intimação sem garantias de independência e do devido processo", afirmou o diplomata de 74 anos, que reivindica a vitória nas urnas sobre o presidente Nicolás Maduro, em um vídeo divulgado nas redes sociais.

"O Ministério Público pretende submeter-me a uma entrevista sem especificar em que condição devo comparecer (acusado, testemunha ou especialista, segundo a lei venezuelana) e com a pré-qualificação de crimes não cometidos", acrescentou González, que apareceu em público pela última vez dois dias depois das eleições, durante uma manifestação da oposição na capital.

Ameaçado de prisão por Maduro, que o chamou de "covarde", Urrutia se limita desde então a pronunciamentos via internet.

"Terá que mostrar a cara", declarou na sexta-feira o procurador Saab em referência a Urrutia, a quem responsabiliza, ao lado da líder da oposição María Corina Machado, por atos de violência nos protestos pós-eleitorais que deixaram 27 mortos – incluindo dois militares -, quase 200 feridos e mais de 2.400 detidos.

O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) proclamou a reeleição de Maduro para um terceiro mandato de seis anos, com 52% dos votos, sem publicar as atas de votação de cada seção, como a lei exige. O organismo alega que seu sistema foi alvo de um ataque de hackers.

A oposição afirma que González Urrutia venceu com 67% dos votos, segundo as cópias das atas que publicou na internet, que o chavismo considera "forjadas".

Após um recurso de Maduro, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) validou na quinta-feira os resultados e acusou González de "desacato" por se recusar a comparecer às audiências. O opositor alegou que seu direito À defesa foi limitado.

30 anos de prisão?

A convocação de González foi anunciada no sábado no âmbito de uma investigação por "usurpação de funções, falsificação de documento público, instigação à desobediência às leis, crimes cibernéticos, associação para cometer um crime e conspiração", segundo um documento divulgado pelo MP.

O advogado Joel García, que defende opositores presos, alertou que "por todo o catálogo de crimes, a pena pode chegar a 30 anos", o período máximo no país.

García denuncia "vícios" na intimação, que convoca González a "dar entrevista" sem esclarecer "em que qualidade foi convocado".

"Parece que ele é acusado (...) Se este é o caso (...) ele deve comparecer acompanhado da sua defesa. Então, o convocado comparece aos tribunais e, em um tribunal de controle, o advogado de defesa é nomeado e é quando pode comparecer", disse o jurista à AFP. "Se não acontecer desta maneira, qualquer coisa que declarasse seria nula", acrescenta.

Se uma pessoa intimada não comparece, o Ministério Público pode solicitar um mandado de prisão a um tribunal.

Machado convocou protestos para a próxima quarta-feira.

A independência do CNE e do TSJ foram questionadas por uma missão da ONU que avalia a situação dos direitos humanos na Venezuela. Estados Unidos, 10 países da América Latina e o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, rejeitaram a decisão do TSJ.

Em um esforço para obter uma negociação entre Maduro e a oposição, os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da Colômbia, Gustavo Petro, insistiram em um comunicado conjunto na "publicação transparente dos dados desagregados por seção eleitoral e verificáveis".

Lula e Petro apresentaram a proposta de novas eleições, uma ideia rejeitada pelos dois lados. (Com NYT e AFP)