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'Sou uma nepo baby, mas estou fazendo meu negócio', diz Flor, filha de Seu Jorge, que lança primeiro álbum
Artista, que mora em Los Angeles, lembra racismo no Brasil, conta que se livrou de expectativas alheias para lançar EP e estreia em show no Rio: 'Flor nasceu cantora e compositora', diz Marisa Monte, com quem tem parceria

Toda vez que chega em casa após se apresentar num palco, Flor lava a louça. É uma lição de humildade que sua mãe faz questão de lhe dar: “Já fez seu show, agora vai limpar o banheiro.” Ela obedece sem pestanejar. Tudo indica que a filha de Seu Jorge e da empresária Mariana Jorge pode ter mesmo que aprender a manter os pés no chão. Aos 21 anos, a cantora e compositora já vem sendo considerada uma “geniazinha da música” por quem entende do assunto.
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Flor de Maria Jorge compõe desde os 7 anos, lembra seu pai. Aos 12, virou parceira dele e de Marisa Monte em “Pra melhorar” (canção do disco “Portas”, com vocais de Flor), criada “num fim de semana inteiro de churrascos” em Los Angeles, onde vive há uma década com a mãe e a irmã, Luz Bella.
Enquanto as outras crianças brincavam, Flor só queria saber de ficar no meios dos adultos fazendo música. Em 2021, lançou-se como cantora com o single “Sapiens”, seguido de “Macumbeira”, ambas em parceria com o maestro Arthur Verocai.
— A Flor é talento, dedicação e consciência do que vai fazer em sua carreira. Muito jovem e madura, terá um belo futuro — garante Verocai.
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O futuro, no caso, começa agora, quando ela se joga no mundo com seu álbum de estreia, “Prima”, composto por sete faixas autorais criadas ao lado dos amigos Ayush Garg e Mateo Pitkin, o Teo’ma. Produzido por ela com Alé Araya, Jack Mock, Issac Oshuntola e Henry Cikanek, o EP chega às plataformas dia 6. Antes disso, em 1º de setembro, a artista faz o primeiro show no Rio de Janeiro, em evento produzido pelo Queremos!, abrindo a apresentação da rapper americana Rapsody, no Circo Voador.
— Flor nasceu cantora e compositora. Desde pequena fazia suas próprias músicas, é dona de um timbre singular e tem muita autoridade. É minha parceira mais jovem. Agora, em seu primeiro EP, demonstra personalidade na produção e reafirma o melhor de sua linhagem — diz Marisa Monte, considerada uma “tia” por Flor, que nasceu duas semanas antes de Mano Wladimir, filho da cantora.
Piscina de referências
No centro da tal linhagem citada por Marisa está a criação de Flor, em meio a um vasto horizonte de referências musicais. Foi a diversidade de sons que forjou sua veia artística. Um caldeirão que transborda agora rhythm and blues, soul, funk, jazz, bossa nova e samba. É essa mistura que compõe seu estilo. Basta ouvir “Prima” — que, segundo ela, “significa primavera, primeira, novas experiências e oportunidades”, para constatar que está tudo lá.
As sete faixas cantadas em inglês com pitadas de português foram produzidas em um ano e meio entre insights e conversas com seus parceiros de Los Angeles. Gente com raízes em Índia, Chile, Paquistão e Equador, que se encontrou naquela terra e atou laços pela via da música. Uma música feita no quarto e na sala das próprias casas, em jam sessions que Flor compara às rodas de samba na casa de Caetano Veloso, que frequentava quando criança.
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— É aquela mesma animação de grupo que junta pessoas e amigos para fazer música e festejar a vida. Vou falando minhas ideias, meus amigos falam as deles, a gente junta tudo e cria — diz ela. — Às vezes, consigo cuspir a música numa porrada só, fazer um freestyle na hora como em “Swing” ou “Poolside” (duas canções do disco). Cada faixa fala sobre um pedaço meu, uma experiência que vivi nesses 21 anos. É novo, é refreshing.
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Flor se expressa naturalmente assim, misturando o inglês em que foi alfabetizada e o português, sua língua materna. Às vezes, têm dificuldade para encontrar a palavra adequada no idioma de seu país. Na música, porém, tudo flui. Ela alterna as línguas de acordo com a levada que deseja:
— Penso no que vai soar melhor naquele beat. É assim que meu cérebro funciona.
Nas letras, Flor fala de seu tempo, de seu mundo. A canção “Fomo”, por exemplo, é inspirada na tal síndrome contemporânea caracterizada pela necessidade de saber o que as pessoas estão fazendo e você está perdendo.
— Foi a música mais difícil de escrever, demorou seis meses. Comecei falando sobre não querer sentir fomo indo para uma festa que não queria ir, mas estava com medo de perder. Só que, quando fui, não gostei e voltei pra casa pensando: “Por que fui nisso?” — conta. — Depois, acabei falando sobre me afastar de pessoas que não fazem bem para a minha energia. Isso vale para amigos, namorados... É tipo: “Vou ficar aqui na minha e você vai sentir falta disso. Fomo, Fear of missing me out”. Não significa apenas medo de perder, mas de sentir minha falta como pessoa ou daquilo de que estou me desfazendo.
Canção que ficou de fora do EP, mas está sempre em seus shows, é “Nine lives”, dedicada às mulheres. Nela, Flor critica a mania dos homens de dizerem que “estamos magras ou gordas demais, com menos ou mais roupa”: “Pode me dar nove vidas e você não vai entender quem eu sou”, diz ela na letra:
— Na verdade, vale para toda a minha geração, que tem essa desconexão por causa do telefone. Todo mundo hoje gosta de ser hater, falar coisas horríveis. Me sinto como se vivesse na era pré-celular. Porque essa música é sobre querer gostar de mim, independente das nove personalidades que tenho e do que as pessoas dizem que tenho que fazer.
De Beyoncé a Hermeto Pascoal
Flor conta que ainda usava fraldas quando teve o desejo de rebolar como Beyoncé. Mas a lembrança musical mais viva que ela guarda na memória é a de dançar na sala de casa com o pai ao som de Hermeto Pascoal.
— Fui criada com todos os tipos de música que você pode imaginar. Em casa, a gente escuta até música turca. Meu pai me deu referência de clássico, jazz e samba. Minha mãe, de rock e hip-hop. Ela também ama John Coltrane— diz.
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Quando criança, a menina gostava de escutar pop “estilo Jay-Z e cia”. Lá pelos 15 anos, passou a olhar mais para a história da música.
— Hoje, escuto k-pop, hip-hop, gosto muito de jazz. No meu Spotify mostro minhas inspirações melódicas e vocais. Escuto Charlie, Doja Cat, Tyla, Robert Glasper Faye Webster, Frank Ocean está sempre está ali no meio.
Com Ocean, ela diz, aprendeu a falar sobre sentimentos, coisas que se passavam dentro dela, mas que não conseguia traduzir.
— Até que, ao analisar as letras dele, percebi que estava falando de culpa, de... como se diz? Shame... — pergunta ela à repórter, que traduz: “vergonha”. — Também ouço meus amigos: Alé Araya, Rahman, Ayush Garg, Mateo Pitkin, Teo’ma...
Infância entre artistas
Flor cresceu entre grandes artistas brasileiros sem ter a menor noção do que eles significavam para a cultura do país.
— Não fazia ideia que Caetano era Caetano. Eram sempre aqueles rodas de música criativa com todo mundo ali fazendo freestyle, o Xande (de Pilares)... Para mim, Caetano e Xande eram só os amigos do meu pai...
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O fato de ter se tornado parceira profissional da “tia” Marisa Monte é motivo de um grande orgulho.
— Cresci com a Marisa, mas é outra coisa quando você é respeitada por uma diva, uma grande pessoa e figura da nossa cultura, né? — analisa. — Fizemos a música só porque ela quis, tem noção disso? Foi tipo “vamos fazer?”. E eu: “Tá falando comigo?” Não acreditei. Ela não estava conseguindo escrever a letra. Aí, fui pra casa com a melodia na cabeça e voltei no dia seguinte com música. Ela até guardou a nossa gravação.
Mas sair do Brasil aos 10 anos também foi, de certa forma, uma libertação. Se por aqui todo mundo sabia de quem ela era filha e depositava na menina a expectativa de que seria uma estrela após vê-la ao lado do pai em um DVD, em Los Angeles era diferente.
— Hoje, todo mundo o conhece lá, amam “Cidade de Deus”. Claro, não é como ser filha do Will Smith... (risos). Acho cool quando alguém da minha idade diz que gosta do meu pai — conta. — Não sei o que eu teria sido se tivesse ficado no Brasil. Sei é que estou feliz com quem eu sou. A decisão dos meus pais de vir para cá foi das melhores coisas que poderia ter acontecido comigo, apesar de ter sido difícil no começo por causa da língua.
Aportar em LA sem inglês afiado rendeu certo bullying. Nada comparado ao que Flor e a irmã sofreram em escolas particulares de São Paulo, onde eram as únicas meninas pretas:
— Tinha criança que me chutava da escada. Outras, não queriam segurar a mão da minha irmã. Gostavam de cortar o cabelo dela na sala. Uma professora falava que eu tinha autismo e não era inteligente o suficiente para aprender. Minha mãe me levou ao médico e viu que não tinha nada. Voltou à escola e falou assim para a professora: “Agora entendo por que minha filha não presta atenção: você é chata pra caralho!” Maravilhosa, né? Me tirou de lá e logo depois nos mudamos para os EUA. Cheguei aqui, me dei bem com as artes, pintei quadros, floresci.
Parceiro de trabalho
A terapia foi dando mais segurança. Aos poucos, o medo de ser comparada ao pai cantor deu lugar à certeza da luz própria. E o fato de fazer um som totalmente diferente de Seu Jorge não os afastou. Pelo contrário.
— Meu pai é meu amigo e meu parceiro de trabalho. Pergunta o que acho das coisas dele e eu pergunto o que acha das minhas. Sempre vou ser a filha do meu pai, isso não vai embora. Sou uma nepo baby pra caralho! Não escolhi, nasci. Mas estou fazendo meu próprio negócio, tenho minha visão de música, estou confiante — diz. — Pai, mãe, irmã, tio, tia, todo mundo vai sempre se meter. Às vezes, escuto e concordo. Outras, digo “não é isso”. Minha mãe me bota pra frente, me incentiva, diz onde preciso melhorar. É da fotografia, da história, de ideias, de visuais. Sei editar, gravar clipe, escrevo story board para cada música que faço. Isso vem dela. Meu pai é mais relax.
Seu Jorge devolve:
— Flor é uma colega de trabalho maravilhosa. As músicas dela são inspiradoras, com muitas referências de mundo, e ao mesmo tempo sem perder o chão brasileiro que ela tem. Ela é cheia de apetite, de vontade de descobrir o mundo, as pessoas, o público dela através da música. Eu desejo muita força e paciência nessa caminhada.
A cumplicidade entre pai e filha pode ser medida pela atenção que ela teve ao vê-lo triste em 2021. Foi Flor quem sugeriu que Seu Jorge fizesse análise:
— Ele estava em um momento de mudança, meio triste. Então introduzi a pessoa perfeita para ele, que conseguiu superar. Fiquei feliz e orgulhosa dele. Sou irmã mais velha e irmã mais velha sabe rodar o mundo.
É com essa mente sã que Flor vai subir ao palco do Circo:
— Fiquei animada com o convite. Mas vou com zero expectativa. Estou ali para curtir, sem pressão, me apresentar como artista nova, mostrar meu trabalho. E dar suporte pra Rapsody, de quem sou muito fã.
Diretor artístico do Queremos!, o curador Pedro Seiler aposta todas as suas fichas:
— Flor vem como um furacão, misturando estilos e referências para montar sua própria história. Seu som é ao mesmo tempo muito brasileiro, mas com alcance global. Com a Rapsody, uma das maiores rappers do mundo, vimos a chance de colocá-la numa noite especial, celebrando a cena black, que também conta com Tamy pra fechar o encontro de mulheres pretas.
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