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Drogas psicodélicas podem dar uma ideia das experiências de quase morte
Uma pesquisa revelou semelhanças entre esses dois estados alterados de consciência

Uma pessoa sentiu a sensação de “flutuar lentamente no ar” enquanto as imagens passavam. Outro recordou “o mais profundo sentimento de amor e paz”, diferente de tudo o que tinha experimentado antes. A consciência tornou-se uma “entidade estranha” para outra cujo “todo o senso de realidade desapareceu”.
Estes foram alguns dos relatos em primeira mão partilhados em uma pequena pesquisa com pessoas que pertenciam a um grupo incomum: todos tinham passado por uma experiência de quase morte e experimentado drogas psicodélicas.
Os participantes da pesquisa descreveram suas experiências de quase morte e psicodélicas como distintas, mas também relataram uma sobreposição significativa. Num artigo publicado nesta quinta-feira (22), os investigadores usaram estes relatos para comparar os dois fenômenos.
— Pela primeira vez, temos um estudo quantitativo com testemunhos pessoais de pessoas que tiveram ambas as experiências — diz Charlotte Martial, neurocientista da Universidade de Liège, na Bélgica, e autora das descobertas, que foram publicadas na revista científica Neuroscience of Consciousness. — Agora podemos dizer com certeza que os psicodélicos podem ser uma espécie de janela através da qual as pessoas podem entrar em um estado rico e subjetivo semelhante a uma experiência de quase morte.
As experiências de quase morte são surpreendentemente comuns – estima-se que 5 a 10% da população em geral relata ter tido uma. Durante décadas, os cientistas rejeitaram em grande parte as histórias fantásticas de pessoas que regressaram da beira da morte. Mas alguns pesquisadores começaram a levar esses relatos a sério.
— Nos últimos tempos, a ciência da consciência tornou-se interessada em estados incomuns — pontua Christopher Timmermann, pesquisador do Centro de Pesquisa Psicodélica do Imperial College London e autor do artigo. — Para obter uma visão abrangente do que significa ser um ser humano é necessário incorporar essas experiências.
É difícil estudar experiências de quase morte em laboratório, uma vez que normalmente envolvem ataques cardíacos ou outras condições potencialmente fatais.
Uma forma de contornar esta questão é encontrar circunstâncias substitutas que induzam um estado semelhante, mas que não coloquem em risco a segurança dos participantes. Alguns estudos compararam experiências de quase morte com meditação profunda, desmaios e drogas que alteram a mente, mas fizeram-no através da análise de relatos dessas experiências.
Para o novo estudo, Martial, Timmermann e Robin Carhart-Harris, psicofarmacologista da Universidade da Califórnia, em São Francisco, recrutaram 31 pessoas que relataram ter tido experiências de quase morte e drogas psicodélicas.
Os participantes eram, em sua maioria, homens dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, cujas experiências de quase morte resultaram principalmente de eventos traumáticos, como acidentes de carro. Alguns experimentaram drogas que alteram a mente apenas algumas vezes; outros fizeram isso mais de 100 vezes. A maioria usou LSD ou cogumelos com psilocibina.
A maioria das pessoas disse que recorreu às drogas psicodélicas algum tempo depois do encontro com a morte.
— É possível que a experiência de quase morte tenha motivado as pessoas a consumir drogas, mas não perguntamos isso, por isso não sabemos — conta Martial.
Os pesquisadores pediram aos participantes que preenchessem questionários para avaliar aspectos como dissolução do ego, percepção psicológica e potência da memória. Eles também responderam a perguntas abertas.
Os resultados revelaram sobreposição significativa entre as experiências. Muitos participantes relataram sentir-se como se tivessem deixado o mundo terreno, uma percepção alterada do tempo e uma sensação de paz e inefabilidade.
Ambas as experiências também tenderam a mudar a visão dos participantes sobre a vida. As experiências de quase morte eram mais propensas a deixar as pessoas com menos medo de morrer, enquanto os psicodélicos aumentavam as conexões com outras pessoas, a natureza e o cosmos.
— É significativo e intrigante que as descobertas dos pesquisadores repliquem muitas das descobertas de estudos comparativos anteriores, incluindo efeitos duradouros em relação ao significado pessoal, psicológico e espiritual dessas experiências — pontua Anthony Bossis, professor assistente clínico de psiquiatria na Universidade de Nova York, que não participou do estudo.
Também houve diferenças notáveis. Os participantes relataram alucinações visuais mais fortes com psicodélicos e uma maior sensação de terem deixado o corpo em situações de quase morte.
Dinesh Pal, professor associado da Universidade de Michigan, disse que as descobertas sugerem que os psicodélicos “podem ser uma ferramenta poderosa para estudar experiências de quase morte, especialmente porque não envolvem alguém à beira da morte”. Ele não esteve envolvido na pesquisa.
Sandeep Nayak, professor assistente da Universidade Johns Hopkins, que não esteve envolvido na pesquisa, acrescentou que o estudo não foi claro quanto ao contraste. Pode ser que estes estados “sejam todos profundamente semelhantes de uma forma fundamental”, disse ele. Mas pode acontecer que “as nossas medidas sejam demasiado grosseiras para as diferenciar”.
Timmermann reconheceu que o novo estudo era apenas “um ponto de entrada”. Estudos futuros poderiam explorar os possíveis mecanismos cerebrais subjacentes a todas as experiências místicas, disse ele, e também investigar a forma como estes fenômenos podem variar entre pessoas e culturas.
— Algumas características parecem transculturais — diz Timmermann. — Mas outras podem ser influenciados pelas nossas narrativas culturais.
Os investigadores planejam estudos adicionais para testar se certas drogas psicodélicas podem ter uma sobreposição ainda mais forte com experiências de quase morte, incluindo o 5-Meo-DMT, um poderoso componente psicodélico encontrado no veneno de um sapo do deserto.
— Há muitas conjecturas de que vários estados alterados podem ser o mesmo tipo de coisa – que estamos apenas vendo diferentes partes do elefante — conclui Timmermann.
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