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Tela atribuída a Tarsila do Amaral passa por autentificação, mas metodologia é questionada por associação de galeristas

Revelada ao público em abril, obra 'Paisagem, 1925' foi levada para o Líbano em 1976 e voltou ao Brasil no ano passado; família da pintora se divide em relação ao processo de certificação da obra

Agência O Globo - 20/08/2024
Tela atribuída a Tarsila do Amaral passa por autentificação, mas metodologia é questionada por associação de galeristas

Quatro meses após uma polêmica aparição na 20ª edição da SP-Arte, em abril, a tela “Paisagem, 1925”, atribuída a Tarsila do Amaral (1886-1973), teve sua autenticidade comprovada, de acordo com a informação divulgada anteontem pela Tarsila S.A., empresa responsável pelo gerenciamento do espólio da pintora, a OMA Galeria, que intermedia as negociações da obra, e o perito Douglas Quintale, que conduziu o processo de certificação.

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Na época, o surgimento de uma nova tela da artista chegou a ser questionada por agentes do mercado de arte. Ontem, diante do anúncio, a Agab (Associação de Galerias de Arte do Brasil) publicou nota afirmando que não reconhece o laudo de autenticidade da tela “assim como outros eventuais laudos de obras atualmente desconhecidas que venham a surgir no futuro”, caso a verificação de autenticidade não conte com a participação de Tarsilinha do Amaral (sobrinha neta da pintora), Aracy Amaral, Vera d’Horta, Regina Teixeira de Barros, e Maria Izabel Branco Ribeiro, responsáveis pela catalogação das obras da artista em seu catálogo raisonné.

A pintura, que não consta do raisonné da modernista, publicado em 2008, é de propriedade de Moisés Mikhael Abou Jnaid, brasileiro-libanês com dupla nacionalidade, que teria sido levada para o Líbano em 1976 e voltado somente em dezembro do ano passado. Em abril, a obra estava à venda por R$ 16 milhões, mas agora, diante da certificação, estaria avaliada em R$ 60 milhões, segundo a OMA Galeria.

Em meio a uma disputa judicial, Tarsilinha foi substituída na gestão do espólio no final de 2023 por Paola Montenegro, sobrinha bisneta da modernista. Com a posterior mudança no Comitê de Autenticação, agora presidido por Quintale, houve uma alteração da metodologia, antes conduzida por Aracy Amaral, responsável pelos trabalhos do raisonné.

Perito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e dono da Quintale Art Law, especialista em autentificação de obras de arte, Douglas Quintale diz que, por conta das dúvidas levantadas quando o quadro surgiu, todas as etapas foram seguidas de contraprovas. O processo, segundo o perito, contou com avaliações de grafotecnia e pinacologia, exames de luz ultravioleta, infravermelho e imagens hiperespectrais.

— Foi tudo feito com tecnologia de ponta. Se fosse para autenticar um Picasso, um Zurbarán, um Leonardo da Vinci, seria feito da mesma forma. Com a tecnologia mais avançada disponível hoje, o nível é de 100% de acerto de que se trata de uma obra original — diz Quintale. — Para além da certificação, estamos deixando para a família um banco de dados completo sobre as obras da Tarsila, que vai auxiliar em outras possíveis avaliações.

Paola Montenegro diz que, a partir da certificação, um novo trabalho de catalogação vai ser iniciado:

— O primeiro passo já foi dado. Implementamos a metodologia de certificação e, com isso, esperamos iniciar o trabalho da nova catalogação nos próximos anos. A autenticação da obra mostra o quão necessária era a modernização desse processo.

Mesmo com os herdeiros podendo receber 5% da venda, por direito de sequência (porcentagem a cada vez que uma obra é negociada), a sobrinha neta da pintora se diz temerosa com a transação.

— Não tive acesso ao laudo, o que seria muito importante. Nunca tivemos nada a respeito dessa obra, meu pai foi advogado da Tarsila a vida inteira e não há nenhum registro dessa venda. Claro que uma obra valorizada interessa a todos os herdeiros, mas a principal preocupação é não prejudicar o bem maior, que é o nome da minha tia.

Negociação com instituição internacional

Segundo Quintale e a OMA, o laudo só será fornecido à gestão atual do espólio e a possíveis compradores por conta do risco de que as informações levantadas nos exames sejam usadas por falsários. Fundador da OMA Galeria, Thomaz Pacheco diz que há uma negociação em curso com uma instituição de fora do país.

— Havia o desejo de negociar com uma instituição, para que a obra fosse vista pelo público. Também vamos tentar, a partir da autentificação, que ela integre exposições da Tarsila que serão abertas pelo mundo — comenta o galerista, para quem a certificação contribui para valorização. — É uma pintura da fase Pau-Brasil, a mais valorizada da Tarsila, sem dúvida uma obra ímpar, certificada por métodos científicos inquestionáveis. Tudo contribuiu para a envergadura desse trabalho.

Um dos signatários da nota da Agab, Jones Bergamin, o Peninha, da Bolsa de Arte, diz não compreender o aumento no valor da avaliação da tela:

— Minha opinião continua a mesma, de que não é autêntica. Não é uma opinião só minha, mas de uma parte da comunidade da arte, de marchands, colecionadores, curadores, restauradores. Como você tem uma Tarsila em casa e não nem uma fotografia dela na parede? — questiona Bergamin, responsável, em 2020, pela venda da tela “A caipirinha”, da pintora, por R$ 57,5 milhões. — Essa valorização é fictícia. Ela valeria R$ 20 milhões, R$ 25 milhões no máximo. Como ela chegaria a um valor próximo de uma “Caipirinha”, uma obra histórica?

A reportagem tentou falar com Aracy Amaral e Moisés Mikhael Abou Jnaid, mas não foi possível até a sua publicação. Na nota publicada pela OMA Galeria, Jnaid explica que a tela foi um presente de seu pai, Mikael Mehlem Abouij Naid, para sua futura esposa, Beatriz Maluf, pelo seu matrimônio, realizado em novembro de 1960, em Pirajú (SP). A tela foi para Zahle, terceira maior cidade do Líbano, após a morte de Beatriz, e teria retornado ano passado após a eclosão da guerra entre Israel e Hammas. "A tela tem um valor simbólico e emocional para mim e para a minha família, pois está conosco desde muito tempo, mas reitero que foi um presente do meu pai para minha mãe, e passado de geração para geração. Até então, não tínhamos ciência do valor estimado desta obra e não havíamos pensado em trazê-la ao Brasil tão cedo", diz o proprietário da tela, no comunicado.