Internacional
Análise: Afinal, a Venezuela é uma ditadura ou não?
Presidente Lula classificou regime de Nicolás Maduro como um 'governo com viés autoritário'; especialistas ouvidos pelo O GLOBO explicam diferenças, antes e depois das eleições

Em mais uma capítulo das articulações do governo brasileiro para mediar a crise na Venezuela, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse, em entrevista nesta sexta-feira, que não considera o país caribenho uma ditadura, mas um "governo com viés autoritário". Desde a eleição presidencial de 28 de julho, em que o presidente Nicolás Maduro foi reeleito num resultado contestado pela oposição e por parte da comunidade internacional, o mundo observa em alerta a escalada da repressão do regime chavista, que já prendeu mais de 2.500 manifestantes. Especialistas ouvidos pelo O GLOBO, no entanto, se dividem ao cravar se a Venezuela pode ou não ser definida como uma ditadura.
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Para o professor de Política Internacional na UERJ, Paulo Velasco, apesar do "caráter subjetivo" por trás do conceito de ditadura, "não há meio termo no caso da Venezuela". Fatores como prisões políticas, o impedimento à candidatura de opositores, como ocorreu com a líder María Corina Machado, a cooptação do Judiciário e do Legislativo, hoje sob domínio chavista, e o cerceamento à liberdade de imprensa, elenca, enquadram o país "sem dúvida" nesta classificação.
— Talvez não baste um desses elementos, mas uma combinação deles me permite dizer que sim, a democracia deixou de existir. Mesmo que se realize eleições, que o povo seja consultado por meio de referendos, isso por si só não assegura o funcionamento de uma democracia quando essas outras variáveis se apresentam — afirma, cravando: — E este particularmente é o caso da Venezuela.
Retorno ao Mercosul
Velasco defende, ainda, que rompimento da Venezuela com a democracia não é algo recente, embora tenha se deteriorado ainda mais ao longo do último processo eleitoral:
— A grande a ruptura com a democracia em definitivo se deu em 2017. Naquele momento, o Maduro, de maneira absolutamente arbitrária e à margem da Constituição venezuelana, decidiu convocar eleições para uma Assembleia Constituinte com o objetivo único e claro de usurpar os poderes da Assembleia Nacional, que era controlada pelos opositores — pontua. — Não por acaso foi quando o Mercosul suspendeu a Venezuela aplicando o Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático.
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Favorável à integração sul-americana, Lula já disse que gostaria de ver o país vizinho novamente no Mercosul, o que abriria o mercado venezuelano aos produtos brasileiros. No entanto, o compromisso com a democracia é um dos requisitos para os membros ativos do bloco, e reconhecer a guinada do regime Maduro para uma ditadura poderia minar os planos do presidente. A última vez em que defendeu a reintegração da Venezuela foi há um mês, durante viagem à Bolívia, recém incorporada como membro pleno.
"Esperamos também poder receber logo e muito rapidamente de volta a Venezuela [no Mercosul]. A normalização da vida política venezuelana significa estabilidade para toda a América do Sul", disse em declaração conjunta com o mandatário boliviano, Luis Arce, que reconheceu a vitória de Maduro no pleito.
Autocracia x ditadura clássica
Na avaliação de Carolina Pedroso, professora de Teoria Política da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), há particularidades no sistema venezuelano que o afastam de uma ditadura "clássica", como a que o Brasil e diversos países da América Latina enfrentaram no século passado. Segundo ela, a Venezuela, como boa parte das "autocracias contemporâneas", começou com um governo democraticamente eleito que, com o tempo, se tornou mais autoritário — ao contrário de regimes como o da Eritreia, cujo mandatário ascendeu por meio de um levante e permanece até hoje no poder.
— Há autores que apontam que o fato de que atualmente até regimes não democráticos procuram ter algum verniz democrático os diferencia das ditaduras do século passado — afirma, destacando dois pontos de consenso entre os teóricos para a classificação de uma ditadura: — Temos ações que colocam pouca dúvida, como o fechamento do Congresso e o uso ostensivo das Forças Armadas para assaltar o poder.
Embora o apoio da ala militar, inserida nos diversos órgãos administrativos, seja um dos principais instrumentos de Maduro para se manter no poder, Pedroso atribui a centralidade das Forças Armadas na política venezuelana à Constituição de 1999, formulada durante o primeiro mandato de Hugo Chávez (1999-2013), cuja popularidade sempre bastou para que governasse. Por outro lado, a investida de Maduro em 2017 à Assembleia Nacional, sob controle da oposição, não impediu que a Casa continuasse funcionando à revelia do regime, proclamando inclusive seu líder, Juan Guaidó, como presidente interino, explica a professora.
— Chávez nunca precisou dos militares para se assegurar ao poder, ele sempre venceu eleitoralmente, com pleitos reconhecidos pelo Centro Carter. A militarização do governo, de fato, começou com Maduro. Se fosse ditadura, essa seria a regra desde o início — afirma Pedroso, destacando também as brechas na atuação do Legislativo para defender seu ponto: — Em uma ditadura, a oposição jamais teria conseguido eleger a maioria legislativa e, menos ainda, proclamar um presidente "paralelo", que pode não ter tido grandes capacidades de atuação interna, mas teve acesso às reservas internacionais dos bancos dos EUA e Inglaterra (...) e conseguiu fugir do país.
Mariano de Alba, assessor sênior do Crisis Group especialista em Venezuela, prefere classificar o regime venezuelano como "um governo autoritário, no sentido de que ainda há uma série de direitos em vigor, alguns deles em teoria, mas outros também na prática". No entanto, pontua, os rumos que o país vem tomando nos últimos dias — como a prisão de mais de 2.500 manifestantes, muitos deles acusado de "terrorismo", a aprovação de uma lei para aumentar o controle sobre as ONGs, além de discussões sobre regular as redes sociais, incluindo a suspensão temporária do X (antigo Twitter) — o aproximam de uma ditadura.
— O que aconteceu nos últimos dias nos coloca em um panorama muito mais complexo e próximo de uma ditadura, no sentido de que o governo, ao que tudo indica, devido ao controle institucional que exerce sobre o Conselho Nacional Eleitoral e o Supremo Tribunal de Justiça, está tentando impor um resultado eleitoral que não tem justificativa — afirma de Alba. — Também estamos vendo um dos piores períodos de repressão nos últimos 10 anos na Venezuela. O governo está imerso em uma lógica de tentar colocar medo na sociedade para que ela não possa se expressar, não apenas pelo uso da força, mas também por medidas como o cancelamento de passaportes de pessoas que não têm nada a ver com o conflito político.
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Perspectivas para o futuro
Para os especialistas, as expectativas para o futuro da democracia venezuelana são desanimadoras. Pedroso observa uma transição do que classifica como o atual "autoritarismo competitivo" — que permite algum grau de disputa com chances para a oposição, mesmo que no nível regional, a exemplo da vitória de um opositor em Barinas, estado onde Chávez nasceu — para um "autoritarismo hegemônico", dominado pelo chavismo.
De Alba defende uma negociação para reconstruir a democracia, ainda que seja reconhecido o resultado apresentado pela oposição — que defende a vitória do seu candidato, Edmundo González Urrutia, por 67% dos votos, com base em 83% das supostas atas eleitorais obtidas e publicadas na internet. O CNE declarou Maduro vencedor por 51% dos votos, mas até hoje não mostrou os boletins das urnas que comprovariam a vitória, apesar da pressão internacional.
— Mesmo se considerarmos verdadeiros os resultados que a oposição publicou em um site, os que apoiam o governo ainda representam 30% da população, o que é uma clara minoria, mas é uma minoria cujos direitos devem ser respeitados — afirma o assessor. — Talvez a maior característica que infelizmente coloca a Venezuela no caminho do autoritarismo é que não temos instituições, elas foram aparelhadas. Isso terá de ser reconstruído com grande consenso político para que a democracia possa voltar.
Já Velasco acredita que mesmo uma "improvável" saída de Maduro e uma transição para um governo de oposição não garantiria estabilidade no país, lembrando que o grupo opositor já lançou mão de medidas antidemocráticas no passado para derrubar Chávez.
— No filme da política venezuelana, dificilmente a gente encontra a mocinhos e vilões. Os dois lados do espectro político, tanto o governo quanto a oposição, tem um histórico longo de práticas antidemocráticas — afirma. — É claro que, como Maduro está no poder há 11 anos, ele é o grande responsável pela derrocada da democracia no país, mas o futuro do que a gente entende como democracia, via de regra, não é tão promissor.
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