Internacional
Clima extremo e casamento infantil: como inundações estão aumentando matrimônios forçados no Paquistão
Com grande parte da população vivendo no meio rural, mudanças climáticas têm afetado sustento familiar e causado o fenômeno conhecido como "noivas do monção"

Prevendo a chegada das fortes chuvas e ventos que ocorrem anualmente no Paquistão, Shamila e sua irmã Amina, de 14 e 13 anos, respectivamente, foram entregues em casamento pelos pais em troca de dinheiro para ajudar a família a se preparar para a ameaça de inundações.
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"Eu estava contente por saber que ia me casar (...) Pensava que minha vida seria mais fácil", explica Shamila à AFP, após seu casamento com um homem que tem o dobro da sua idade e com quem esperava ter uma vida mais próspera.
"Mas eu não tenho nada. E com a chuva, temo que vou ter ainda menos, se isso é possível", afirma.
"Noivas de monção"
O número elevado de casamentos de meninas menores de idade no Paquistão havia diminuído nos últimos anos. Mas após inundações sem precedentes em 2022, ativistas dos direitos humanos afirmam que essa prática voltou a aumentar, estimulada pela insegurança econômica ligada aos fenômenos climáticos extremos.
A temporada de monções, entre julho e setembro, é vital para o sustento de milhões de agricultores e para a segurança alimentar do país, que tem a maior parte da população vivendo no meio rural - apenas 37% moram nas metrópoles. Na época desse fenômeno natural, ventos mudam de direção, causando maior umidade em terras do sul da Ásia, assim como, aumento de chuva que pode auxiliar na agricultura.
No entanto, os cientistas alertam que as mudanças climáticas estão fazendo com que essas chuvas se prolonguem e se intensifiquem, aumentando o risco de deslizamentos de terra, inundações e danos a longo prazo para as colheitas além de maiores períodos de secas, que ocorrem logo depois.
Muitas aldeias do cinturão agrícola de Sindh ainda não se recuperaram das inundações de 2022, nas quais um terço do país ficou submerso e milhões de pessoas foram deslocadas de suas casas.
"Isto levou a uma nova tendência de 'noivas do monção'", declara Mashooque Birhmani, fundador da ONG Sujag Sansar, que trabalha com acadêmicos religiosos para combater o casamento infantil.
"As famílias buscarão qualquer meio de sobrevivência. A primeira e mais óbvia é casar suas filhas em troca de dinheiro", diz.
Birhmani afirma que desde as inundações de dois anos atrás, os casamentos de meninas dispararam nas aldeias do distrito de Dadu, que foi uma das mais atingidas, e durante meses se transformou em um lago.
Na aldeia Khan Mohammad Mallah, onde Shamila e Amina se casaram em uma cerimônia conjunta em junho, 45 menores de idade se tornaram esposas desde o último monção. Um terço se casou em maio e junho deste ano.
"Antes das chuvas de 2022, não havia necessidade de casar meninas tão jovens na nossa região", diz Mai Hajani, um dos anciãos locais de 65 anos.
"Elas trabalhavam no campo, faziam cordas para camas de madeira e os homens estavam ocupados pescando e cultivando. Sempre havia trabalho a fazer", aponta.
Os pais das meninas explicaram à AFP que aceleraram o casamento de suas filhas para se salvar da pobreza.
A sogra de Shamila, Bibi Sachal, conta que pagou 200.000 rupias (R$ 13 mil ) aos pais da jovem noiva, uma quantia enorme em uma área onde a maioria das famílias sobrevive com um dólar por dia.
"Não temos nada para comer"
Najma Ali estava muito animada com seu casamento em 2022, com apenas 14 anos, e sua mudança para a casa da família do marido, como manda a tradição no Paquistão.
"Meu marido deu aos meus pais 250.000 rupias pelo nosso casamento. Mas era um empréstimo (de um terceiro) que agora ele não tem como pagar", explica.
"Pensava que teria batom, maquiagem, roupas e uma louça", reconhece à AFP, com seu bebê de seis meses nos braços. "Mas agora voltei para a casa dos meus pais com um marido e um bebê porque não temos nada para comer".
A terra já não é fértil em sua aldeia, à beira de um canal no vale de Main Nara, e não há mais nada além do odor de águas contaminadas tomando conta da área. Os peixes sumiram.
"Tínhamos arrozais exuberantes onde as meninas costumavam trabalhar", diz Hakim Zaadi, a matriarca da aldeia e mãe de Najma, de 58 anos.
"Se cultivavam muitos vegetais, que agora estão todos mortos porque a água subterrânea é venenosa. Isso aconteceu especialmente desde 2022", acrescenta.
"As meninas não eram um peso para nós antes. Na idade em que as mulheres costumavam se casar, agora já têm cinco filhos e voltam a viver com seus pais porque seus maridos estão desempregados", afirma.
"Quero estudar"
O Paquistão é o sexto país do mundo com o maior número de mulheres casadas antes dos 18 anos, segundo dados do governo publicados em dezembro. A idade legal para casar varia entre 16 e 18 anos, dependendo da região, mas a lei raramente é aplicada.
A Unicef detectou "avanços significativos" na redução dessas práticas, mas há indícios de que esses eventos climáticos extremos colocam as meninas em risco.
"Prevemos um aumento de 18% na prevalência do casamento infantil, equivalente a apagar cinco anos de progresso", afirmou a agência da ONU em um relatório após as inundações de 2022.
Dildar Ali Sheikh, de 31 anos, pensou em casar sua filha mais velha, Mehtab, quando vivia em um campo humanitário montado após as inundações.
"Quando estava lá, pensei: 'Devemos casar nossa filha para que ela possa pelo menos comer e ter serviços básicos'", disse este trabalhador à AFP.
A menina tinha então dez anos. "Na noite em que decidimos casá-la, eu não consegui dormir", conta sua mãe, Sumbal Ali Sheikh, que se casou aos 18 anos.
A intervenção da ONG Sujag Sansar permitiu adiar o casamento e Mehtab começou a trabalhar em uma oficina de costura, contribuindo com uma pequena quantia para a família enquanto continua seus estudos.
Mas, com a chegada das chuvas do monção, ela teme que com elas venha também seu casamento.
"Disse ao meu pai que quero estudar", afirma. "Vejo meninas casadas ao meu redor que têm vidas muito difíceis e não quero isso para mim."
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