Internacional

Crise na Venezuela acende alerta na região, que se prepara para nova onda migratória

Diversos países anunciaram que vão reforçar suas fronteiras diante da expectativa de um êxodo 2.0; 18% dos venezuelanos prometeram emigrar dentro de seis meses se Maduro seguir no poder

Agência O Globo - 09/08/2024
Crise na Venezuela acende alerta na região, que se prepara para nova onda migratória

O cenário de incerteza na Venezuela após a eleição de 28 de julho, com a escalada da violência, prisões arbitrárias e mortes de manifestantes que contestam a reeleição do presidente Nicolás Maduro, acendeu o alerta de países da região, incluindo o Brasil, para uma nova onda migratória caso a situação não seja pacificada. Nesta quinta-feira, a líder da oposição, María Corina Machado, enviou um recado ao México, um dos principais mediadores do impasse interno na comunidade internacional — e ponto central de passagem para aqueles que tentam entrar nos Estados Unidos ilegalmente pela fronteira:

— Digo uma coisa [ao México], se Maduro decidir se manter pela força, na marra [no poder], poderemos ver uma onda de migração como nunca vimos: 3, 4, 5 milhões de venezuelanos em muito pouco tempo — disse María Corina, em videoconferência com a imprensa mexicana.

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Dados das Nações Unidas apontam que 7,7 milhões de venezuelanos deixaram o país devido à crise econômica, social e política na qual a Venezuela mergulhou nos últimos anos. O principal destino é a vizinha Colômbia, que abriga 2,9 milhões de migrantes, seguida por Peru (1,5 milhão) e Brasil (592 mil), que recentemente ultrapassou os Estados Unidos (545 mil) na terceira posição. Com 532 mil venezuelanos, o Chile é o quinto do ranking nas Américas, indicando a extensão de um problema que ultrapassa fronteiras.

Uma pesquisa do instituto ORC Consultores realizada antes das eleições apontou que 18% dos venezuelanos disseram que estariam dispostos a migrar dentro de seis meses caso Maduro permanecesse no poder. Com uma população de cerca de 30 milhões de habitantes, segundo o último censo feito em 2011, isso representaria 5,4 milhões a mais de pessoas na diáspora.

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Reação regional

Diversos governos da região já começaram a tomar medidas para conter a possível aumento no fluxo migratório. O Peru — o primeiro país a reconhecer o candidato opositor, Edmundo González Urrutia, como presidente eleito — suspendeu serviços consulares para cidadãos venezuelanos após suspender as relações diplomáticas com o governo Maduro e anunciou reforço nos controles migratórios.

— Não podemos acolher na magnitude do êxodo anterior — disse o chanceler peruano, Javier González-Olaechea, em entrevista à rádio RPP na semana passada.

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Outra nação que entrou em estado de alerta foi o Panamá, cuja fronteira com a Colômbia, a inóspita selva de Darién, se tornou um dos principais pontos de travessia de imigrantes que tentam chegar por terra aos EUA. Em 2023, mais de meio milhão de pessoas realizaram a perigosa travessia, 63% delas vindas da Venezuela, alimentando o lucro de grupos criminosos que atuam na região.

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Nesta semana, o presidente panamenho, José Raúl Mulino, se reuniu com a chefe do Comando Sul dos EUA, Laura Richardson, para discutir a situação na Venezuela, na esteira do anúncio feito por autoridades fronteiriças do país sobre o reforço no local.

— Eu acredito, e espero estar errado, que o fluxo de venezuelanos [pelo Darién] vá aumentar por razões óbvias. Temos que tomar as decisões correspondentes também para proteger suas vidas, sua integridade e facilitar o trânsito das pessoas que desejam emigrar para os Estados Unidos — disse Mulino em uma coletiva de imprensa.

A questão migratória é uma das principais pautas em disputa nas eleições americanas deste ano. Em dezembro, o fluxo de migrantes que entraram ilegalmente no país pela fronteira sul bateu recorde de 370 mil, levando o governo do presidente Joe Biden a impor uma série de medidas para limitar o acesso na região.

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Na última quinta, o Chile também anunciou reforços nos controles fronteiriços e disse que vai colaborar com países da região no enfrentamento da esperada nova onda migratória. Com quase mil quilômetros de fronteira, a chegada de venezuelanos no país já havia sido um ponto de tensão em fevereiro de 2023, quando militares foram mobilizados para controlar entradas irregulares na divisa com o Peru.

— [O novo fluxo migratório] não é algo que vai acontecer nas próximas horas, mas pode acontecer nas próximas semanas e meses, por isso, temos que nos preparar e não nos preparar sozinhos, mas sim coordenarmos com outros países — declarou a jornalistas a ministra do Interior chilena, Carolina Tohá.

Impacto no Brasil

O Brasil também se prepara para uma nova onda. Segundo pessoas envolvidas diretamente no acolhimento, o ingresso de venezuelanos na fronteira, em Roraima, cresceu de cerca de 300 pessoas para até 650, diariamente. São milhares de pessoas que vêm para o Brasil e grande parte delas procura os programas sociais, como o SUS e o Bolsa Família. Com o recrudescimento da crise, a tendência é que cresça a entrada de vulneráveis, como idosos, crianças, famílias monoparentais e pessoas com deficiência.

Oficialmente, os dados obtidos pelo governo não mostram expansão até o momento. Isso porque a situação começou a piorar apenas nos últimos dez dias. Técnicos dos ministérios da Justiça e Segurança Pública e do Desenvolvimento Social afirmam que há planos de contingência dentro da Operação Acolhida, como o monitoramento do fluxo de entrada no país e da população de rua. Entre as medidas que poderiam ser tomadas, destacam-se a abertura de novos abrigos, o aumento do contingente de pessoas que trabalham lá e a ampliação da oferta de refeições.

Ao GLOBO, o secretário Nacional de Justiça, Jean Uema, disse que já existe uma preocupação permanente com o ingresso de imigrantes do país vizinho. Uema destacou que, em 2018, no governo Temer, a Operação Acolhida foi criada em caráter emergencial.

— A Operação Acolhida, embora muito bem-sucedida na sua operacionalização, foi criada para uma situação emergencial. Só que já se passaram seis anos — afirmou.

Temor de polarização

Atualmente, de um total de 203 milhões de habitantes no Brasil, apenas 1% são imigrantes. Uema disse que o governo Lula está formulando ajustes na atual política migratória brasileira. Ele ressaltou que, no Brasil, a Lei de Migrações é recente, de 2017 ,e está adequada às normas internacionais.

— Temos uma lei acolhedora, generosa, que respeita os direitos dos imigrantes.

Hoje, os imigrantes já podem acessar os programas sociais. Mas faltam políticas específicas. Por exemplo, ainda este ano deverão ser criados grupos de trabalho para tratar da saúde, da educação e da segurança dos estrangeiros que estão no Brasil.

— Outra coisa é a acolhida. De quem é a responsabilidade no governo federal de coordenar, junto com os estados e municípios, a política nacional de abrigamento daqueles que chegam hoje? Não há nada definido — afirmou.

O secretário disse que serão necessários recursos e fontes de financiamento. Mas ressaltou que a prioridade do governo Lula é a responsabilidade fiscal.

— Não queremos que o tema migração caia no contexto da polarização que existe no mundo — disse, referindo-se às propostas contra a migração defendidas por políticos da extrema direita, principalmente na Europa.