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Crítica: Em 'Bambino a Roma', Chico Buarque reinventa sua infância na Itália dos anos 1950
Novo romance do autor e compositor adota ares memorialísticos para abordar paixões que o acompanhariam vida afora

Se o novo romance de Chico Buarque, “Bambino a Roma”, tivesse uma trilha sonora própria, estariam nela marchinhas, sambas e canções que marcaram o cinema europeu dos anos 1950. A obra, que chega hoje às livrarias, soa como um filme italiano do pós-guerra, um retrato em branco e preto de um garoto espertíssimo e desencanado que, longe da sua terra natal, está sempre às voltas com suas duas maiores paixões: o futebol e as meninas. Paixões essas que, como se sabe, o autor nunca deixou de cultivar em prosa e verso.
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Nesse mergulho leve e bem-humorado nos seus primeiros tempos na capital italiana, onde voltaria a morar já na vida adulta, Chico Buarque conta causos que protagonizou — ou que inventou — quando sua família viveu em Roma, entre 1953 e 1955. Na época, seu pai, o já célebre sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, lecionou na Universidade de Roma e, naturalmente, levou consigo a mulher, Maria Amélia, e seus sete filhos.
No novo livro, o compositor vai longe para abrir o baú da memória — com direito, claro, a invencionices que colorem aquela vivência distante (pois já lá se vão sete décadas desde que tudo mais ou menos aconteceu). Daí classificar “Bambino a Roma” como livro de ficção mesmo, e não uma autobiografia tout court.
E que graça teria, aliás, Chico escrever uma autobiografia, considerando tantos livros que já reviraram suas vidas de cima a baixo para comemorar os 80 anos completados mês passado?
Mar afora
Como já deixou claro em outros de seus romances, o compositor não está preocupado em ser memorialista. Ele é um criador. O que importa é manter a narrativa em alto nível, com cada detalhe harmonicamente pensado, ralentando o andamento de tempos em tempos, improvisando ou citando obras passadas sempre que o momento pede. Um arranjo bem pensado.
Se trabalhamos no campo da ficção, então vamos chamar Chico Buarque de Narrador — que inicia “Bambino a Roma” já na mudança da família rumo à Itália, deixando São Paulo para trás. Tinha por volta de 9 anos. O garoto se retrata agarrado à bola de futebol, observando a casa paulistana ficando para trás e, logo em seguida, relata seus múltiplos enjoos mar adentro, até o desembarque, semanas depois.
Na nova terra, o Narrador revive Francesco, o guri brasiliano com muitos irmãos que faz amigos e coleciona histórias ao circular pela cidade em sua bicicleta de aros brancos. A vida é doce.
Na Notre Dame International School, estuda com colegas estrangeiros. É o cara que tenta ensinar aos amigos as marchinhas em italiano: “Tu pensi que cachaça è acqua?/ Cachaça non è acqua, no/ Cachaça viene dell’alambicco/ E l’acqua viene del ruscello”.
Desperta admiração, às vezes inusitadas ou inconvenientes. Sem qualquer mimimi, diga-se, o Narrador relata que costumava ser bulinado por um professor que, de resto, fazia o mesmo com outros alunos. Fato ou fake? Faz diferença?
Desejos e descobertas não faltam ao longo da narrativa. Vê-se logo que o pequeno Francesco já era bem chegado a observar o mundo e as meninas — e a construir em silêncio paixões ardentes por mulheres já feitas.
É louco, por exemplo, pela jovem professora de italiano do pai, e malandramente faz de tudo para mostrar a ela a manifestação gloriosa de sua potência de guri. A mãe, no entanto, impede a tempo que a cena de exibicionismo explícito aconteça...
O Narrador também alimenta sentimentos nobres por ninguém menos que a linda atriz Alida Valli, estrela (real) do cinema italiano que seria mãe de um colega seu de escola — e com quem teria tido o prazer de dançar uma valsa por alguns minutos. Verdade ou apenas um desejo encruado de um Chico Buarque molecote. Que diferença faz?
Dos sonhos silenciosos, o garoto larga a inércia e trata de correr atrás de seduzir seus objetos de desejo, a ponto até de escrever um romance, aos 10 anos de idade, apenas para impressionar a jovem Sandrene, uma pré-adolescente que vira sua fonte de respiração. Diga-se que, insensível, ela deixa as páginas do romance se espalharem pelas ruas. Mas ele não desiste.
É assim que Francesco vai colecionando episódios demasiado humanos da fase mais carnal, digamos assim, da sua iniciação erótica. Desde já, fica na história da literatura erótica light o curto encontro íntimo de Francesco com uma amiguinha que presta às tangerinas um merecido reconhecimento pelo seu apelo erótico.
Alegria do povo
E tem o lance com o futebol, claro. Naquela (então) terra de pernetas, o brasiliano Francesco é o craque, o experiente peladeiro de rua, dono da bola de couro que ele afirma (mentirosamente) ter sido de Ghiggia, o célebre craque uruguaio que desmontara a seleção canarinho na Copa de 1950. Tudo conversa para manter seu cartaz. O mesmo que lhe permite um lugar especial para acompanhar numa loja de TVs a Batalha de Berna, o jogo em que Brasil perdeu de 4 a 2 para a Hungria, já na Copa de Suíça, 1954.
O livro é isto, um inventários de reminiscências e de possibilidades, tudo combinadinho. É doce, é lúdico sem ser intantiloide — armadilha em que muitos narradores caem ao falar de sua infância. Pode virar minissérie de TV, filme em PB, pode virar qualquer coisa que o mercado queira. Tá pronto.
Para quem conhece a obra literária de Chico Buarque, ele parece cada vez mais desinibido — bem distante da contenção e da sobriedade de sua estreia como romancista, “Estorvo” (1991), que lhe abriu uma carreira merecedora de deferências grandiosas — inclusive o Prêmio Camões, o mais prestigioso da literatura em língua portuguesa.
Com suas observações e ironias, comentários distraídos e outras manhas, Chico escreveu uma obra que deflagra mil e uma histórias paralelas — tudo, como sempre, depende mais do leitor do que o escritor. E o escritor, neste caso, não parece muito disposto a “esclarecer” o que andou contando neste novo livro — que tem jeitão de comover muitos júris de prêmios literários até porque, como um retrato dos nossos tempos, tudo ali pode ser fake. Se as fotos de família são verídicas, de fato, nada garante que o tal Francesco e seus interlocutores tenham existido. E isso não faz qualquer diferença.
Serviço: ‘Bambino a Roma’. Autor: Chico Buarque. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 168. Preço: R$ 79,90. Cotação: Ótimo
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