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Em livro de memórias, autor de novelas Aguinaldo Silva revela inspiração de personagens como Nazaré Tedesco e Pereirão
Autor de 'Senhora do destino' lança 'Meu passado no perdoa', no qual recorda seus tempos de repórter no GLOBO e fundação de jornal gay durante a ditadura militar: 'Nunca fui vítima, sempre encarei a vida de frente'
Os noveleiros se lembram bem: no segundo capítulo de “Senhora do destino”, folhetim da TV Globo de 2004, a prostituta Nazaré Tedesco (vivida por Adriana Esteves na primeira fase e depois por Renata Sorrah) se fantasia de enfermeira e rouba Lindalva, filha da mocinha Maria do Carmo. Quando ainda vivia no Recife, Aguinaldo Silva, o autor da novela, conheceu uma “mulher da vida” que toda noite se vestia de enfermeira para evitar que os vizinhos descobrissem sua verdadeira ocupação. Ela se chamava Marlene e, diferentemente de Nazaré, “não era má”, conta Aguinaldo em “Meu passado me perdoa” (Todavia), seu recém-lançado livro de memórias.
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Em 400 páginas novelescas e encharcadas de bom-humor, o ex-repórter do GLOBO revela como episódios de seu passado foram parar no horário nobre. Sabe quando Maria do Carmo banha seu bebê num rio no capítulo de estreia de “Senhora do destino”? Aguinaldo viu a cena da janela de um ônibus, no sertão pernambucano, onde fora cobrir a campanha de Miguel Arraes ao governo estadual. Já a “marido de aluguel” Griselda (Pereirão), de “Fina estampa”, foi inspirada na portuguesa Antonieta, que fazia consertos no bairro carioca de Santa Teresa, onde o autor viveu nos anos 1970. A infância de Ferraço, o vigarista de “Duas caras”, foi emprestada de Tonha dos Milhões, amigo de adolescência de Aguinaldo (na época, os rapazes gays da turma tinham apelidos femininos).
— O autor de novelas tem que tomar cuidado para não criar personagens que ele não conhece, senão fica fake e o telespectador não acredita no que está vendo — diz Aguinaldo, que cedeu à vilã de “A indomada” o nome que ele usava para se inscrever em concursos literários: Altiva Pedreira.
Prisão na ditadura
Aguinaldo é autor de 16 romances e está trabalhando em mais um: “Atirem na loira!”, policial que promete arrancar gargalhadas. Sua estreia literária, “Redenção para Job”, aos 16 anos, foi publicada pela Editora do Autor (de Fernando Sabino e Rubem Braga). Ano que vem, a Todavia relança “No país das sombras”, de 1979.
Prolífico na TV e na literatura, por muito tempo Aguinaldo preferiu se identificar apenas como jornalista. No Recife, trabalhou no Última Hora e, já no Rio, passou oito anos no GLOBO. No fim de 1969, dias após ingressar no jornal, foi preso pela ditadura militar. Um ano antes, ele havia escrito o prefácio a uma edição dos diários de Che Guevara. Passou 70 dias incomunicável no presídio da Ilha das Flores. Quando voltou ao jornal, os colegas todos fingiram naturalidade, como se o tivessem visto na noite anterior. Durante o tempo que padeceu na cadeia, seu salário continuou sendo depositado regularmente, por ordem de Roberto Marinho, dono do jornal.
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— Minha alma continua sendo de jornalista. A reportagem sempre foi o meu método para escrever novela. Eu agia como se estivesse escrevendo uma reportagem sobre o retorno de Tieta a Santana do Agreste, por exemplo — diz ele, referindo-se à novela exibida em 1989.
No GLOBO, Aguinaldo era copidesque, responsável por burilar o texto de repórteres que passavam o dia na rua, à caça de notícias. Acabou fazendo de tudo um pouco, da edição à reportagem policial. Também colaborou com a imprensa alternativa (uma seleta desses textos aparece em “Turno da noite”, de 2016). Em 1975, ele foi um dos fundadores do Lampião da Esquina, o primeiro jornal gay do Brasil. Em “Meu passado me perdoa”, diz que editar o jornal “foi a mais prazerosa aventura” de sua vida.
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— Foi a primeira vez que os homossexuais se viram como uma comunidade. Gays que tinham cargos altos em empresas começaram a anunciar no jornal. Uma vez entrou um anúncio de página inteira da estreia de “Apocalipse now”, com o Marlon Brando — recorda. — É uma heresia dizer isso, mas a ditadura foi uma das épocas mais criativas que eu vivi, porque a gente se sentia na obrigação de enganar a censura.
Aguinaldo precisou lutar contra a homofobia. No capítulo que abre o livro, ele narra que, aos 13 anos, seus colegas de escola tentaram humilhá-lo elegendo-o Rainha da Primavera. No mesmo dia, um homem o encontrou atordoado na rua e o levou para pensão onde morava — e abusou dele. Aguinaldo conta que bloqueou o episódio e só conseguiu recordá-lo décadas depois. Na juventude, ele e os amigos eram sistematicamente perseguidos por uma gangue de motoqueiros, filhos da elite recifense. E revidavam os ataques. Quando Aguinaldo lançou seu primeiro livro no Rio, aos 16 anos, Clarice Lispector apareceu na livraria e perguntou: “Tem certeza que você não é uma menina?”.
Com humor e sem drama
Como bom protagonista de novela, Aguinaldo superou tudo, venceu na vida e não guarda ressentimentos.
— Minhas memórias não têm aquele tom “ai, coitado de mim, como eu sofri”. Nunca fui vítima, sempre encarei a vida de frente — afirma. — Meu problema é achar tudo engraçado, por mais dramática que seja a situação. Quem foi que disse que gente veio ao mundo para ser feliz? Acho que viemos ao mundo para achar tudo isso muito engraçado e depois ir embora, sem drama.
Serviço:
'Meu passado me perdoa: memórias de uma vida novelesca'
Autor: Aguinaldo Silva. Editora: Todavia. Páginas: 400. Preço: R$ 69,90.
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