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Perto dos 80 anos, Irene Ravache diz que é transgressor não fazer intervenções estéticas: 'Não mexi no meu rosto'
Atriz estreia peça e filmes, repassa carreira e se indigna com situação na segurança: ‘Poderíamos processar o Estado. Mas seguimos pagando impostos e ficando quietos’

Irene Ravache gostaria de não assumir nenhum compromisso profissional. Assim teria como se dedicar a projetos particulares, desde retomar o estudo de francês até morar numa cidade pequena. Felizmente para o público, o que está acontecendo é o oposto. Prestes a completar 80 anos, no dia 6 de agosto, Irene será vista em diversos trabalhos. Estreará, no próximo dia 2, no Teatro dos 4, “Alma despejada”, encenação de Elias Andreato para a peça de Andréa Bassitt. E aparecerá em três novos filmes: “O clube das mulheres de negócios”, de Anna Muylaert, “Os enforcados”, longa de Fernando Coimbra selecionado para o Festival de Toronto, e “Passagrana”, de Ravel Cabral.
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— “O clube das mulheres de negócios” propõe uma inversão do tratamento historicamente destinado a homens e mulheres. Elas surgem com voz de comando, enquanto eles têm comportamento submisso e corpos objetificados. É realista, ainda que com um pé na fantasia. Em “Os enforcados”, uma trama repleta de contravenções em família, faço a mãe da personagem de Leandra Leal. E, em “Passagrana”, sobre amigos que aplicam pequenos golpes e decidem partir para um roubo a banco com auxílio de atores, minha personagem é uma das selecionadas para participar do assalto.
Disposição não falta e a chegada dos 80 anos não a intimida.
— Oitenta anos é só um número, mas um número que tem uma marca. Seja como for, eu não mexi no meu rosto. Fui envelhecendo com ele. Tomei essa decisão porque posso me ver com essa idade. Eu aguento. E isso é transgressor.
As escolhas de Irene são movidas pelo impacto e pela identificação. Foi dessa maneira que ingressou na carreira, meio ao acaso.
— Assisti à montagem de “A ratoeira” e perguntei a um dos atores, Labanca, de que forma eu poderia fazer teatro — conta Irene, mencionando a encenação do Teatro do Rio para o texto de Agatha Christie. — Labanca recomendou que eu cursasse a Fundação Brasileira de Teatro, conduzida por Dulcina de Moraes. Foi o que eu fiz.
Sobre a dura vida do trabalhador
Mais de 60 anos depois desse contato inicial com teatro, Irene continua se comprometendo com projetos a partir do elo pessoal. “Alma despejada” é um exemplo. Escrita para Irene, a peça, após passar por São Paulo, Belo Horizonte e cidades do Sul do Brasil, desembarca no Rio. Irene interpreta Teresa, que, depois de morta, faz uma última visita à casa onde morou, ocasião em que traz à tona os principais episódios de sua vida. Talvez surpreendentemente, o tema da morte não é o que mais a mobiliza.
— O momento da peça que mais me toca é aquele em que a personagem se refere ao vínculo com uma antiga funcionária. Essas mulheres me comovem. Tive uma, Nininha, que trabalhou durante muitos anos na minha casa. Ela chegava bem cedo para ir embora a tempo de conseguir voltar sentada na condução — lembra Irene.
O apego de Teresa à casa também reverbera em Irene.
— Entendo perfeitamente Teresa não querer se afastar de sua casa. Eu e meu marido, Edison (Paes de Melo), nos desfizemos de uma casa que tínhamos em Cotia. A região deteriorou. Precisamos erguer um muro. Deixou de fazer sentido. Mas era uma casa que me remetia bastante à dos meus avós, que moravam no caminho para o Corcovado — rememora.
Irene expressa nostalgia pela segurança que experimentou na infância e na juventude.
— Lembro de uma época em que São Paulo parecia cidade do interior. Andava pelo Rio de Janeiro, à noite, sem medo. É impensável hoje em dia. Nós não temos a medida do roubo da nossa liberdade. Poderíamos processar o Estado por causa disso. Mas seguimos pagando impostos e ficando quietos — constata.
São memórias e posicionamentos intensos que “Alma despejada” acionou em Irene. A peça — o segundo monólogo de sua carreira (o primeiro foi “Eu me lembro”, de Fernando Moreira Salles e Geraldo Mayrink) — dá continuidade à parceria com Andréa Bassitt. Anteriormente, Irene produziu “As turca”, texto de Andréa.
— Irene é uma atriz que domina a palavra e tem habilidade no diálogo direto com o público. Esses componentes estão em “Alma despejada”, tanto por meio da atividade de professora de Teresa, que implica uma relação fundamental com a palavra, quanto da estrutura narrativa da peça, que faz a personagem se dirigir à plateia — observa Andréa.
Vontade de inovar
A comunicação com o público é um elemento evidente nos espetáculos de Irene. Seu repertório sinaliza a preponderância de textos voltados à realidade cotidiana.
— Não priorizei a montagem de textos clássicos. Optei por peças que reverberam de modo imediato na plateia. As pessoas me falam sobre a importância que determinada peça que fiz teve nas vidas delas — comemora Irene.
Esse envolvimento está na base da atuação de Irene. Vale citar um dos notáveis sucessos de sua carreira: “De braços abertos”, peça de Maria Adelaide Amaral
— No final, eu dizia um texto e entrava a música “Eternamente”, na voz de Gal Costa. Eu me emocionava. Sempre tenho receio de levar uma rasteira da emoção. Por isso, o meu trabalho é técnico. Mas a técnica deve estar a serviço da emoção — assinala.
Irene integrou elencos de mais duas montagens de textos de Maria Adelaide, “Bodas de papel” e “Inseparáveis”. “De braços abertos”, porém, foi singular.
— Quando fez 40 anos, Irene me pediu um texto. Eu havia escrito capítulos de um livro, “Luísa (Quase uma história de amor)”. Enviei para ela, que gostou muito. A partir daí, elaborei a peça — diz Maria Adelaide.
Outros espetáculos de grande sucesso exigiram de Irene minucioso domínio físico e vocal. Em “Filhos do silêncio”, de Mark Medoff, interpretou uma personagem surda e precisou aprender a linguagem dos sinais e se condicionar à circunstância de não ouvir.
— Numa das sessões, uma luz estourou no palco. Todos se assustaram. Fiquei parada, sem reagir ao barulho. A plateia percebeu e aplaudiu — lembra.
Irene guarda mais uma recordação preciosa dessa montagem, que diz respeito a uma profissional essencial em sua trajetória: a fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller.
— Ela indicou que eu fizesse exercícios para não perder a voz. Não entendi. Afinal, não falava em cena. Mas perdi a voz. Glorinha disse: “Lógico. Você não está usando a voz, que é o seu instrumento primordial. Acabou jogando toda a tensão para ela” — explica.
Houve mais desafios de peso. Em “Uma relação tão delicada”, de Loleh Bellon, e “Intimidade indecente”, de Leilah Assumpção, Irene interpretou, sem os habituais apoios de caracterização, personagens que envelheciam ao longo do tempo. Centrada na conexão entre mãe e filha, a peça de Bellon levava as atrizes — Irene e Regina Braga — a uma alternância de diferentes fases etárias das personagens.
— Nós fazíamos o rejuvenescimento e o envelhecimento sem recursos externos. Era tudo no olhar e no corpo — ressalta Regina, que frisa a repercussão da montagem junto ao público. — Ficamos quatro anos em cartaz com teatros lotados.
As personagens de Irene são populares e aclamadas, mas não acomodadas. Ao contrário. Chama atenção a natureza transformadora delas.
— Em “Afinal, uma mulher de negócios”, Eva começa submissa, apanhando do marido, e termina dizimando o que está à sua frente — sublinha Irene, sobre o texto de Rainer Werner Fassbinder.
Medo de quê?
Nessa linha de ruptura, Irene relembra um dos espetáculos mais fortes de sua carreira, “Roda cor de roda”, peça de Leilah Assumpção, na qual interpretou Amélia, esposa tradicional que, diante da traição do marido, converte a casa num bordel.
Com a mesma ousadia, Irene dirigiu Raul de Orofino no projeto Teatro a Domicílio, que consistia em apresentações nas casas dos espectadores, e em sessões a bordo de aviões. E se aventurou como autora, a convite do diretor Antonio Gilberto, em “Fragmentos”.
O destemor acompanha Irene em trabalhos no cinema, em especial em “Que bom te ver viva” (1989), em que a diretora Lúcia Murat reuniu depoimentos de mulheres torturadas na ditadura militar. Coube a Irene interpretar uma personagem fictícia, mas com pontos de encontro com vivências da própria Lúcia.
— Irene se lançou sem limites na personagem. A ditadura era muito recente. O medo não estava em denunciar, e sim em falar sobre como a tortura abalou as pessoas em relação ao mundo, ao outro, ao sexo — diz Lúcia, que, em “A memória que me contam” (2012), voltou a dirigir Irene numa personagem ligada à de “Que bom te ver viva”.
Na telinha
A versatilidade de Irene — comprovada no cinema por meio de uma variedade de filmes, de “Doramundo” (1978), de João Batista de Andrade, a “Depois daquele baile” (2006), de Roberto Bomtempo — também se manifesta na televisão. Entre as novelas das quais participou, uma se tornou, no final da década de 60, divisora de águas: “Beto Rockfeller”, de Bráulio Pedroso.
— O galã trocou o terno por camiseta e tênis. Era politicamente incorreto, preguiçoso, malandro, aplicava golpes — aponta Irene.
Não há como deixar de destacar “Éramos seis”, adaptação de Silvio de Abreu e Rubens Ewald Filho da obra de Maria José Dupré.
— Foi a primeira novela que escrevi e por recomendação de Edison, marido de Irene. Na época, ela era jovem para fazer a protagonista, Lola. Quando vendi a novela para o SBT, a quis no papel e o resultado foi magnífico — elogia Silvio, que teve Irene em outras novelas, geralmente no registro de humor. — Ela adora comédia, mas não costuma ser escalada para o gênero. Então, criei para ela personagens com humor em novelas como “Sassaricando”, “Belíssima” e “Passione”.
É óbvio que nem todos os instantes foram alegres. Irene vivenciou um fato desestabilizador: a súbita morte de Jardel Filho, em 1983, durante a novela “Sol de verão”, de Manoel Carlos.
— O elenco disse ao Boni que não queria que Jardel fosse substituído. Ele concordou. Tinha uma percepção contemporaneamente generosa — analisa Irene, sobre José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, ex-diretor da TV Globo.
Apesar da carreira consagrada, Irene não concretizou tudo o que gostaria.
— Tenho vontade de fazer um personagem masculino — revela.
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