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Aposta mais importante do governo de Macron, decisão de dissolver o Parlamento foi tomada com ajuda de grupo seleto

Presidente se mantém firme na decisão, mas, com nacionalistas de extrema direita se aproximando do poder na França, alguns acreditam que ele pode ter ido longe demais

Agência O Globo - 30/06/2024
Aposta mais importante do governo de Macron, decisão de dissolver o Parlamento foi tomada com ajuda de grupo seleto
Emmanuel Macron - Foto: reprodução

O primeiro-ministro do presidente da França, Emmanuel Macron, foi um dos últimos a saber. Isso mostra quão sigilosa e restrita foi a reunião de conselheiros em que o chefe de Estado confinou a decisão de dissolver o Parlamento e antecipar as eleições legislativas do país. Gabriel Attal era o favorito de Macron quando foi nomeado ao cargo de primeiro-ministro. Poucos meses depois, o líder francês o desprezou no momento de considerar uma das decisões mais importantes de seu mandato presidencial: a de convocar uma eleição no momento em que o partido anti-imigração, o Reagrupamento Nacional (RN), ascendeu.

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Uma fotografia postada pela fotógrafa oficial de Macron no Instagram capturou a consternação quando, em 9 de junho, o presidente informou seu governo sobre sua decisão. Attal, de braços cruzados, parecia inexpressivo. Gérald Darmanin, o ministro do Interior de longa data que desde então anunciou que deverá deixar o governo, parecia incrédulo, com as mãos unidas em frente ao rosto. Macron, que se define como um “otimista incorrigível”, insiste que precisou convocar as eleições – que o mantém como presidente, mas que pode forçá-lo a compartilhar o poder com seus opositores nos três últimos anos de seu mandato.

A palavra favorita do mandatário francês tornou-se “esclarecimento” – algo que, segundo ele, somente uma votação nacional pode proporcionar. Após seu partido ser derrotado pelo RN, sigla de extrema direita de Marine Le Pen, nas eleições do Parlamento Europeu, continuar como se nada tivesse acontecido seria mostrar desprezo pela democracia, argumentou ele aos jornalistas. Ainda assim, nada o obrigava a realizar uma eleição antecipada, a poucas semanas dos Jogos Olímpicos de Paris, com a possibilidade de trazer a direita nacionalista ao poder.

— Ele jogou roleta russa com a França — disse Célia Belin, pesquisadora e membro sênior do Conselho Europeu de Relações Exteriores em Paris. — É quase imperdoável.

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Certamente, algo mudou. Macron, que tomou o país de assalto há sete anos, quando veio do nada para enterrar os antigos alinhamentos da política francesa e se tornar presidente aos 39 anos, parece agora cada vez mais isolado em suas certezas ousadas – que alguns dizem arrogantes –, cercado por um círculo cada vez menor. As conversas em Paris estão cheias de expressões como “aposta arriscada”, e alguns dizem que o presidente “perdeu o contato com a realidade”. Outros se esforçam para compreender por que razão ele escolheu arriscar tanto.

A realidade da França hoje é que o RN, tendo suavizado sua imagem mas mantendo a crença de que os imigrantes representam uma diluição da identidade francesa, provou ser o partido mais apto a explorar os medos, ressentimentos e a raiva generalizada da nação. Macron, duas vezes eleito e nunca derrotado no palco nacional, ainda acredita que triunfará – e, claro, ainda é concebível que ele possa. Ele acredita que, confrontados pela extrema direita, que ameaça os valores da República, e pela extrema esquerda com explosões antissemitas, os franceses optarão novamente pela política pragmática da centro-direita.

Funcionários do círculo de Macron disseram, sob anonimato, que a noção de que o líder francês se tornou impopular é um mito. Eles citaram como prova sua aparição este mês nas ruas de Bayeux, uma cidade na Normandia, onde cerca de 3 mil pessoas apareceram para recebe-lo – muito mais do que os 800 esperados. Um dos membros da comitiva do presidente disse que “muitos podem não gostar dele, mas o respeitam”.

‘Ousadia’ e ‘arrogância’

Foi preciso ousadia para mudar um país resistente a qualquer diluição de seu modelo social. Em sete anos, Macron reduziu o desemprego, tornou a França atraente para investimentos estrangeiros de rápido crescimento, fomentou um próspero setor de tecnologia, lutou para convencer os franceses de que a idade de 62 anos para a aposentadoria não é mais razoável e conduziu o país durante a Covid-19. O que ele não conseguiu fazer, contudo, foi se livrar da imagem de arrogância moldada por uma educação de elite e pelo distanciamento dos que lutam para sobreviver no mês em lugares distantes da economia das grandes cidades.

Essa falha agora é acompanhada pelo início de uma corrida pelo fim de regime, já que Macron tem um limite de mandato e deve deixar o cargo em 2027. A última sondagem do Ifop-Fiducial, realizada esta semana, atribui ao partido de Macron e seus aliados apenas 21% dos votos na eleição de dois turnos em 30 de junho e 7 de julho, enquanto o RN lidera confortavelmente com 36% e o Nova Frente Popular, que agrupa partidos que vão dos socialistas à extrema-esquerda, conta com 28,5%. A animosidade é tão grande que muitos candidatos centristas insistiram que não querem ter a imagem de Macron associada às suas campanhas.

Em muitos aspectos, a maneira como Macron decidiu dissolver a Assembleia Nacional parece ser um exemplo de seu estilo de governança altamente centralizado. Mesmo para os padrões da Quinta República, concebida em 1958 para dar enormes poderes à presidência, Macron governou em sua própria cabeça e por seu próprio decreto. Na avaliação de Hakim El Karoui, um consultor privado que trabalha nas questões de imigração que estão no cerne da ascensão do RN, o presidente “nunca cedeu um pouco de seu poder para exercê-lo coletivamente”.

Até o próprio governo de Macron se desgastou. Um grupo de apenas quatro pessoas, entre elas Bruno Roger-Petit, um ex-jornalista que aconselha Macron sobre a memória nacional francesa, teve a ideia de uma dissolução na noite da eleição para o Parlamento Europeu, de acordo com um relato no Le Monde que desde então foi amplamente confirmado. Isso levou Bruno Le Maire, o ministro da Economia que precisou lutar para estabilizar a economia francesa após o anúncio da eleição antecipada, a descrever os conselheiros de Macron como “piolhos” numa entrevista televisiva na semana passada.

A imprevisibilidade não é do agrado dos investidores, e a dívida da França já havia disparado devido ao apoio a trabalhadores e empresas durante os confinamentos da pandemia.

Nova Assembleia Nacional

O ex-primeiro-ministro de Macron, Édouard Philippe, amplamente visto como um provável candidato presidencial em 2027, declarou este mês que “foi o presidente que matou a maioria presidencial”. É provável que o RN seja o maior partido da nova Assembleia Nacional, mesmo que possa não alcançar uma maioria absoluta. Também é provável que o partido de Macron fique em terceiro lugar, atrás do de Le Pen e da Nova Frente Popular, que representa a esquerda. Isso seria, então, o “esclarecimento” – mas que envolve uma incerteza redobrada.

Se o RN garantir uma maioria absoluta, Macron pode ter que nomear Jordan Bardela, 28 anos, o popular protegido de Le Pen, como primeiro-ministro. Bardella poderia então escolher seu gabinete. Embora a França já tenha conhecido “coabitações” antes, esta seria a primeira vez que ela ocorreria entre dois homens de convicções tão diametralmente opostas. E, mesmo que a sigla da extrema direita não ganhe a maioria, o mandatário enfrentará um Parlamento fortemente dividido, mais ingovernável e menos favorável a ele do que o que ele escolheu dissolver, com a possibilidade de caos político por vários meses.

Ainda assim, Macron negou que irá renunciar em tais circunstâncias. Ele permanece inabalável na convicção de que será justificado, e disse não ter “um espírito derrotista”.