Internacional
Tensões geopolíticas atuais reavivam apelo de armas nucleares, alerta diretor-geral da AIEA
Para o diplomata, aumento global dos gastos com arsenais atômicos é ‘efeito rebote’ do momento atual, e tendência pode alcançar mais países se programa nuclear do Irã continuar avançando
Desde o auge da corrida nuclear no pós-Segunda Guerra, o mundo não via líderes adotarem uma retórica tão inflamada sobre armas atômicas. Em meio aos grandes conflitos ativos na Europa e no Oriente Médio e às tensões latentes no resto do planeta, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) das Nações Unidas é um dos poucos organismos internacionais com trânsito livre para dialogar com todos os lados.
Em visita ao Brasil, o diretor-geral da AIEA, Rafael Grossi, contou ao GLOBO qual sua maior preocupação diante do cenário atual, o que observou durante sua viagem ao Irã em maio, logo após a troca de ataques com Israel no mês anterior, além de detalhes sobre a missão da agência na usina ucraniana de Zaporíjia, hoje sob domínio russo. Para o diplomata argentino, o aumento dos gastos no setor é um “efeito rebote” do acirramento das disputas geopolíticas, e há risco de essa tendência alcançar nações que hoje não têm arsenais atômicos, sobretudo se Teerã seguir avançando.
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Os gastos com armas nucleares estão crescendo em ritmo acelerado, apesar dos esforços pela não proliferação nas últimas décadas. Em comparação com outros períodos da História, o quão perto estamos de uma guerra nuclear hoje?
A história da corrida por armamentos nucleares não é linear. Nesse momento, temos novas tensões geoestratégicas e a arma nuclear reaparece como um fator possível. Ela já era um ingrediente presente na estrutura internacional, mas com a guerra na Ucrânia e talvez um confronto ainda maior entre o Ocidente e a Rússia, se tornou uma possibilidade. A situação no Oriente Médio é também preocupante: há países que não esclarecem totalmente a situação de seus programas nucleares. Todos esses fatores fazem com que as nações não só abandonem a redução gradual dos seus arsenais, como também — em um efeito rebote — os impulsione. Todavia, [não há] uma corrida como nos anos 1960 e 70, com milhares de armas sendo desenvolvidas pela Aliança Atlântica (Otan) e o Pacto de Varsóvia (União Soviética e aliados). Agora é diferente, mas as tendências são verdadeiramente preocupantes.
O que mais preocupa a AIEA hoje?
A agência está muito preocupada que essas tensões internacionais levem países que ainda não têm armas nucleares a considerá-las e talvez desenvolver programas. Infelizmente, a gente tem que reconhecer que o atrativo da arma nuclear é crescente. Não vou falar quem por motivos diplomáticos, mas há países muito importantes que dizem abertamente que, caso o Irã obtenha armamento nuclear, eles farão o mesmo. São nações relevantes do Oriente Médio e da Europa. Muita gente pensa que esse fenômeno poderia também se estender à Ásia. É por isso que, para nós, reforçar o regime de não proliferação é essencial, mesmo que ele não seja perfeito. Há muitos debates acerca do seu caráter discriminatório, sobre os países que têm e não têm [armas atômicas]... Tudo isso pode estar certo, mas a realidade é que um mundo com mais armas nucleares não será mais estável do que o mundo que temos agora.
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Considerando que todos os cincos membros permanentes do Conselho de Segurança são potências nucleares, é possível frear a atual corrida atômica sem uma reforma das Nações Unidas?
Eu acredito que não é impossível. A reforma das Nações Unidas e do Conselho de Segurança é muito importante e deve ser abordada, sem dúvidas. Mas quando a gente fala do aumento nos arsenais nucleares, na minha visão, é um fenômeno independente — que deve ser tratado também numa perspectiva multilateral, mas que precisa de muito mais diálogo e entendimento entre as nações. As reformas institucionais são importantes, mas não são uma condição suficiente para isso.
O senhor esteve no Irã no mês passado, logo após a troca de ataques com Israel. Qual é o cenário do programa nuclear do país hoje?
O programa nuclear do Irã tem uma característica muito importante: a sua continuidade, apesar do isolamento econômico. Ele continuou mesmo durante o acordo P5+1, entre os membros permanentes do Conselho de Segurança e o Irã — que estabeleceu um controle mais forte ao programa. Mas isso não deu certo a partir do momento que o governo americano deixou o acordo em 2018, e o Irã fez o mesmo. Por isso que a situação no Irã é preocupante, pois não há mais um enquadramento, mas um sistema de salvaguardas que se aplica somente às instalações declaradas, e sabemos que o país tem muito mais. A agência tinha, na época do tratado, um conhecimento muito maior sobre o programa, e perdemos a visibilidade sobre as suas capacidades reais.
É possível que o Irã já tenha armas nucleares e as esteja escondendo? A agência teria meios de detectá-las sem cooperação do governo?
O Irã não tem, nesse momento, armas nucleares. Seria muito difícil chegar a esse ponto sem que agência tenha indicações bastante claras disso, [já que] inspecionamos todo o inventário de urânio e as capacidades de enriquecimento. A AIEA tem suas limitações, mas não podemos afirmar que Irã tem hoje um plano nuclear coerente. Esse foi o caso no passado, mas agora não. Admitindo isso, também é alarmante que o Irã tenha toda essa acumulação de urânio a níveis quase militares sem termos clareza dos motivos — há quem diga que é para fins medicinais, mas é um pouco duvidoso, se for isso. Nós tentamos manter um equilíbrio, respeitando a soberania do Irã, mas também sendo assertivos na busca pela verdade.
Israel não faz parte do Tratado de Não Proliferação (TNP) e também não assume ter um arsenal nuclear. O que agência sabe sobre o seu programa nuclear?
Israel tem uma política particular de opacidade, que não afirma tampouco nega ter uma capacidade nuclear. Nós temos uma visão muito limitada do país. Como não faz parte do TNP, Israel declara certas instalações e laboratórios a sua vontade, para não ser inspecionado. Mas elas não são abrangentes e não cobrem todo o espectro do seu programa nuclear.
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A AIEA mantém uma equipe na usina ucraniana de Zaporíjia, hoje sob controle russo. Como agência atua para mitigar os riscos de um acidente nuclear em meio à guerra?
O primeiro passo é estar ali. Após uma visita na central logo no início da guerra, deixamos um grupo de inspetores num sistema de presença, monitoramento e informação permanente. Isso não é suficiente para evitar um acidente nuclear, mas ajuda muito, pois temos uma atuação dissuasiva e uma capacidade de informar ao mundo inteiro sobre o que acontece. Nesse momento, eu sou o único que fala com o [presidente russo, Vladimir] Putin e o [líder ucraniano, Volodymyr] Zelensky — e isso não é fonte de orgulho, desejaria que fossem muitos mais. No entanto, as ameaças continuam presentes, não podemos esquecer que Zaporíjia está em uma zona de combate ativo, com episódios de ataques e incursões de drones que podem colocar em risco a integridade da central.
A Rússia abandonou o acordo Start com os EUA e já disse estar “pronto para uma guerra nuclear”, numa ameaça indireta à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Como o senhor avalia esse movimento?
Isso é a consequência natural dessas tensões internacionais, que provocam um deficit de confiança. Sem confiança, não há incentivos para manter as estruturas legais de limitação do armamento nuclear ou ainda criar outras novas. Isso é mais que uma fonte, é um sintoma de uma situação de bipolaridade crescentemente hostil.
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Recentemente, os EUA acusaram a Rússia de estar desenvolvendo armas nucleares espaciais para destruir satélites, o que Moscou negou. Como é feito o controle desse tipo de tecnologia?
Esses desenvolvimentos tecnológicos sempre podem causar desestabilização. No espaço ultraterrestre, a gente tem um tratado de 1967 que proíbe formalmente a incorporação do armamento nuclear. É por isso que eu não acredito que a Rússia ou outro país vá promover esse tipo de iniciativa. Há outros desenvolvimentos, ligados a armamentos autônomos e à utilização da Inteligência Artificial, também muito inquietantes. E não podemos negá-los, pois fazem parte desse novo mundo de tensões que acreditávamos já ter superado. Sempre devemos ter a consciência de que as estruturas normativas internacionais foram criadas por uma razão. Esse foi o convencimento adotado, até mesmo com as grandes potências, para que essas áreas fossem limitadas.
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O uso de energia nuclear na transição energética ainda é um assunto controverso. De que forma essa fonte pode auxiliar no combate às mudanças climáticas?
Essa fonte de energia já auxilia. Na Europa, metade da energia limpa é nuclear. No mundo inteiro, 30% da energia limpa é nuclear. Na COP28, a conferência climática da ONU em Dubai, os países reconheceram que a energia nuclear deve ser acelerada. Isso é um consenso global, mas a nível político eles concordaram em adotar energia nuclear paralelamente às renováveis — e nós somos muito favoráveis a isso. Acreditamos em uma integração inteligente das fontes energéticas limpas. O inimigo é a mudança climática, [a emissão de] carbono, não a energia nuclear. Precisamos chegar a um ponto de esclarecimento para utilizar as melhores fontes em cada país. A energia nuclear não é para todos, mas tem uma importância crescente no mundo inteiro.
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