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Atentas às fantasias femininas e ao algoritmo, autoras independentes fazem fama e fortuna com romances 'hot'

Histórias protagonizadas por CEOs, esportistas ou mafiosos colocam o prazer feminino em primeiro lugar; sucesso das escritoras depende da submissão às regras do gênero

Agência O Globo - 04/06/2024
Atentas às fantasias femininas e ao algoritmo, autoras independentes fazem fama e fortuna com romances 'hot'

A carioca Karen Santos sempre gostou de histórias românticas. Não perdia novelas mexicanas, leu “Senhora”, de José de Alencar, e devorava os livros da americana Diana Palmer, povoados por caubóis sensuais. Para descansar de seu mestrado em análise algorítmica, começou a escrever histórias de amor com cenas calientes. Despretensiosamente, lançou um e-book “hot” na Amazon e ganhou um trocado. Seguiu escrevendo e publicando — e seis meses depois já faturava o triplo de seu salário. Hoje, Karen se sustenta escrevendo romances eróticos. Já comprou casa e viajou para a Europa. Somente o best-seller “Um amor de vizinho” rendeu, em um mês, 12 vezes o que ela recebia quando tinha carteira assinada.

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Karen faz parte de um hábil grupo de autoras (como Lola Belluci, Jéssica Macedo, Tati Biasi, Mari Cardoso e outras) que conhece os desejos de seu público, sabe tirar proveito dos algoritmos e consegue se sustentar (e bem) com livros. São títulos que quase nunca têm edição impressa, custam menos de R$ 5 e são devorados pelas assinantes do Kindle Unlimited, serviço de e-books da Amazon, que as remunera por páginas lidas (Karen já passou das 100 milhões). Várias delas já traduzem seus títulos para outros idiomas e estão investindo em audiolivros.

— Sempre ouvi que escritor no Brasil passava fome e que, se fosse autor independente, precisava ter mais de um emprego — conta Lola, que acumula, pela métrica do Kindle Unlimited, “mais de 247 milhões de páginas lidas”. — O que eu não sabia era que existia um grupo enorme de leitoras que lê quase um livro por dia.

Filas para autógrafos

Em nota, a Amazon destaca que os romances hot “têm um ritmo acelerado de publicação e leitura” e que “algumas autoras lançam livros a cada 15 dias e têm público fiel”. A empresa diz “fomentar a expansão do gênero” convidando as principais best-sellers para eventos literários, como as bienais do Rio e de São Paulo. No ano passado, um coletivo de autoras hot bancou seu próprio estante na Bienal do Rio, o “Apimentadas”. Leitoras faziam fila para pedir um autógrafo.

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Lola estava lá. Ela conta que pôde largar a sala de aula depois de lançar “Contrato de prazer”, a história de uma jovem desempregada que aceita viver um relacionamento de mentira com um empresário rico (e o que era uma transação comercial, é claro, vira uma paixão tórrida). Em um mês, ela embolsou dez vezes seu salário de professora.

As histórias “de contrato” são um dos subgêneros mais populares na literatura hot. Entre outras tramas populares estão ainda aquelas que envolvem o universo esportivo, as que têm figuras masculinas que abandonam seus filhos e as protagonizadas por empresários (especialmente CEOs) viris ou mafiosos românticos.

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— O CEO é o príncipe moderno, e o mafioso é o homem poderoso que salva a donzela indefesa — brinca a mineira Jéssica Macedo (690 milhões de páginas lidas), que dá a “receita” de um bom romance hot. — O foco é sempre o desenvolvimento da relação do casal: como se conhecem, como se envolvem, que problemas enfrentam para ficar juntos. Nem sempre o ápice de um romance hot é a cena de sexo. Pode ser o momento em que o galã entrega o cartão para a mocinha e diz que ela pode gastar sem limites (risos).

O protagonista masculino é sempre um homem maduro e bonitão, às vezes meio sombrio, bem de vida e competente na cama. Ser um bom pai (ou aprender a ser) também ajuda a despertar o interesse das leitoras.

Para elas

Jéssica descreve os romances hot como “releituras dos contos de fada”. Karen acrescenta que, não obstante o formato heteronormativo e um tanto conservador (o sonho da mocinha é formar a “família do comercial de margarina”), as protagonistas sempre têm atitude e bancam seus desejos.

— Esses livros ajudam mulheres a entrarem em contato com desejos que elas já têm e a viverem fantasias que às vezes são distantes de sua realidade: com um homem rico e bonito que pega com mais força, histórias de sadomasoquismo — diz a influenciadora Duda Gaboardi, que promove literatura hot em redes sociais. — Como são voltados para o público feminino, o prazer da mulher está sempre em primeiro lugar.

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As autoras afirmam que não há uma quantidade ideal de cenas apimentadas num romance hot. Depende do casal. Se o protagonista for um viúvo tristonho, por exemplo, o sexo pode demorar para rolar. Já com um mafioso talvez seja mais agilizado — e bruto. Em “Um amor de vizinho”, o doutor Green é um rapagão de bem com a vida, mas ele e Amy, sua vizinha nerd, só vão para a cama na segunda metade do livro — ela demora a superar o jeito metido dele. No entanto, antes da cena hot propriamente dita, a narradora descreve as fantasias dos dois.

É comum que mesmo romances hot brasileiros se passem no exterior. Inclusive, as leitoras curtem quando a linguagem lembra a de romances traduzidos. Por exemplo, “Um amor de vizinho”, de Karen Santos, se passa em Los Angeles e se refere algumas vezes à “masculinidade” do médico Maximilian Green. Em inglês, seria “manhood”, um sinônimo para pênis.

Capas literais

Para fazer sucesso no mundo hot, as autoras precisam aprender estratégias para conquistar a atenção das leitoras, como estampar casais em poses sugestivas ou homens musculosos e descamisados nas capas.

— As capas seguem uma identidade visual que vem desde os romances de banca, de séries como “Sabrina”, “Júlia” e “Bianca”. A capa tem que ser bem literal e ter foto. A leitora bate o olho e já sabe que é um romance erótico — explica Karen. — Para sermos recompensadas pelo algoritmo, temos que colocar palavras-chave no título, no subtítulo e no resumo do livro. É por isso que alguns romances têm subtítulos enormes e literais, como “grávida rejeitada pelo CEO”.

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Mais importante que decifrar o algoritmo, porém, é respeitar as regras do gênero.

— É igual redação do Enem: fugiu ao tema, é desclassificada — resume Jéssica Macedo.

As leitoras podem rejeitar livros em que a mocinha é muito independente ou o protagonista não é um macho alfa. Uma vez, Karen se arriscou: subverteu o clichê do “moreno misterioso” e entregou uma história em que era a mulher a tirar o sossego de um homem. Não deu muito certo. Em sua primeira incursão na literatura hot, Lola Belluci escreveu um romance ambientado numa favela carioca e que tratava de temas como racismo e empoderamento feminino. Flopou.

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A influenciadora Duda Gaboardi, no entanto, percebe que, aos poucos, as leitoras mais jovens têm abraçado livros com pombinhos fora do padrão. Ela cita como exemplo o romance hot “Palavras inesquecíveis”, de Beatriz Garcia, no qual o galã é um homem gordo. E livros de autoras como Ariane Fonseca, Giovanna L Pião e Zoe X, que trazem mocinhas plus size.

No ano passado, Lola lançou “Manual do clichê imperfeito”, um romance ambientado entre competições de hóquei no gelo numa universidade americana. O livro tem uma protagonista negra e arrisca discussões sobre feminismo e questões raciais. Já é um dos títulos mais lidos da autora — várias leitoras se identificaram com a mocinha. Com cautela, Lola pretende politizar cada vez mais suas histórias apimentadas.

— Costumo dizer que minha principal causa sou eu. Sou uma mulher negra e de origem pobre. Com a escrita, conquistei muito mais do que eu sonhei um dia para mim e para a minha família. Meu primeiro objetivo era me estabelecer como escritora. Agora, quero ficar rica. A longo prazo, minha meta é continuar escrevendo literatura de entretenimento, mas falando das questões importantes para mim — diz a autora, que esta semana está viajando pela Itália.