Internacional

Invasão russa paralisa turismo de Chernobyl, que volta a ser terra arrasada

Número de trabalhadores da usina nuclear desativada caiu para menos da metade, moradores fugiram e presença de turistas foi proibida

Agência O Globo - 01/06/2024
Invasão russa paralisa turismo de Chernobyl, que volta a ser terra arrasada

Quando o diretor e roteirista americano Craig Mazin lançou a minissérie “Chernobyl”, em 2019, sobre o desastre ocorrido em 1986 na usina nuclear localizada a cerca de 110 quilômetros de Kiev, capital da Ucrânia, e a menos de 20 quilômetros da fronteira entre o país e a Bielorrússia, a cidade se tornou um centro turístico frequentado, principalmente por europeus. O museu de Chernobyl, lembra seu diretor, Rostylav Omeliashko, era uma das atrações do circuito organizado por agências de viagens ucranianas. Hoje, conta ele, o local é visitado esporadicamente por soldados ucranianos e trabalhadores da desativada usina, que, como outros lugares do território nacional, esteve em poder das tropas russas nos primeiros meses da invasão ordenada pelo governo de Vladimir Putin, em 24 de fevereiro de 2022.

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A ocupação de Chernobyl durou de 24 de fevereiro a 14 de abril de 2022 e, nesse período, afirma o diretor geral da usina, Serhiy Shkulipa, a cidade foi cenário do que pessoas como ele chamam de “terrorismo nuclear”.

— Perdemos o controle da usina e isso foi assustador — diz Shkulipa por meio de uma videoconferência transmitida a um grupo de jornalistas latino-americanos numa enorme sala de um dos prédios do complexo que continua funcionando, atualmente com 450 trabalhadores, menos da metade dos cerca de 1,2 mil que estavam em Chernobyl antes do início da guerra.

Com o conflito entre Rússia e Ucrânia, a mobilidade dos trabalhadores se tornou mais complexa e foi preciso adaptar o funcionamento da usina à nova realidade do país. Os que continuam ativos permanecem 12 dias consecutivos em Chernobyl e posteriormente passam outros 12 dias em suas casas, fora da cidade. Muitas famílias abandonaram Chernobyl após a invasão russa e nunca mais voltaram. Com o turismo nacional e internacional proibido e o êxodo de ucranianos, uma região que viveu momentos de glória por conta de uma minissérie de TV voltou a ser praticamente terra arrasada.

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Entrar na chamada zona de exclusão de Chernobyl, que ocupa aproximadamente 50 quilômetros quadrados e onde ainda existem lugares que devem ser evitados pelo perigo da radioatividade, só é possível com autorização do Estado ucraniano. Apenas soldados e trabalhadores da usina têm acesso diário ao lugar, e, mesmo assim, devem passar por um rigoroso controle. Na hora de sair, todos passam por um exame que mede o nível de radioatividade e determinam se a pessoa está “limpa".

— Hoje civis praticamente não entram na usina — afirma Shkulipa, que lembra a rapidez com a qual as tropas russas chegaram a Chernobyl, através da fronteira com a Bielorrússia. — Se fosse hoje, as mesmas tropas demorariam mais de sete horas. Várias pontes foram destruídas para proteger nossa região.

Em fevereiro de 2022, tropas russas capturaram, segundo autoridades de Chernobyl, 178 soldados ucranianos, dos quais, até a última sexta-feira, 103 continuavam presos em território russo. Durante a conversa com os jornalistas, as autoridades locais confirmaram que 14 soldados foram libertados em troca de prisioneiros russos em poder da Ucrânia. Houve comemoração e aplausos, num lugar que, ainda hoje, é símbolo de tragédia e destruição.

Desde o acidente de 1986, a principal função dos trabalhadores da usina é recolher e transportar resíduos nucleares, sólidos e líquidos. Segundo o diretor geral, atualmente estão armazenados em Chernobyl 200 toneladas de resíduos nucleares, que, diariamente, seus funcionários empacotam e trasladam para depósitos seguros.

O complexo de Chernobyl está formado por quatro blocos, construídos entre 1977 e 1983. O último deles deixou de funcionar no ano 2000. O bloco que foi cenário do acidente nuclear de 1986 foi o número quatro, construído em 1983, apenas três anos antes da tragédia. O lugar foi reconstruído e pode ser visto e fotografado do lado de fora.

As visitas organizadas pelo governo do presidente Volodymyr Zelensky a Chernobyl tem como principal objetivo transmitir aos visitantes estrangeiros os riscos que existem atualmente na central nuclear ucraniana de Zaporíjia, a maior da Europa, ocupada por tropas russas.

— Hoje, Zaporíjia é o lugar mais perigoso do mundo. A qualquer momento pode acontecer um acidente e as consequências seriam catastróficas — assegura o diretor geral de Chernobyl.

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Em Kiev, comentários similares são feitos por autoridades governamentais. No início de abril passado, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA , na sigla em inglês) confirmou que um ataque com drones atingiu a estrutura de contenção de um dos seis reatores nucleares de Zaporíjia, deixando marcas no telhado do edifício de contenção que abriga um reator. Outra detonação foi registrada em um prédio de laboratório.

Em Chernobyl, a ocupação russa terminou faz tempo e o que ficou foi desolação. O lugar parece parado no tempo, e ao percorrer a zona de exclusão de ônibus é possível ver prédios e casas abandonadas no meio dos bosques, num cenário cada vez mais parecido ao da vizinha cidade de Prypiat, onde moravam os trabalhadores da usina que sofreu o histórico acidente de 1986.

Por lá circulam apenas alguns soldados, e todos os prédios estão vazios. Poucos animais aparecem, com exceção dos mosquitos.

— Somos poucos os que voltamos a Chernobyl. Muita gente foi embora após a invasão russa e ficou com medo de retornar. Eu e meu marido ficamos 45 dias fora de casa, mas aqui estamos e aqui ficaremos — afirma Lyubov Zavodenko, que trabalha no Laboratório de Análise de Chernobyl, que monitora o nível de radioatividade na região.

O diretor do laboratório, Mykola Bespalyi, também voltou a exercer o cargo depois de passar um tempo fora da cidade, durante a ocupação. Como na usina desativada, que segundo suas autoridades sofreu danos estimados em US$ 40 milhões durante a presença de tropas russas, Bespalyi fala sobre os estragos causados pelos soldados russos após a ocupação.

— A tela de nossos computadores ainda têm marcas de disparos. Também roubaram equipamentos — acusa o diretor.

Em Chernobyl há rastros de tragédia por todos os lados e a vida humana é cada vez mais escassa.

*Repórter viaja a convite do governo da Ucrânia