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Em Kiev, ucranianos adotam 'modo de vida normal' e evitam falar da guerra: 'Única maneira de poder continuar'

Em teatros, cinemas, cafés, restaurantes, museus, igrejas e comércios moradores da capital tentam tocar a vida; moda é símbolo da resistência feminina

Agência O Globo - 29/05/2024
Em Kiev, ucranianos adotam 'modo de vida normal' e evitam falar da guerra: 'Única maneira de poder continuar'

Fim de tarde em Kiev, clima primaveral, o Sol ainda ilumina uma cidade que nas últimas semanas enfrenta apagões diários, consequência dos ataques russos a centrais elétricas do país, e nas ruas próximas ao Golden Gate da capital ucraniana (construído em meados do século XI), dois jovens atores dançam na calçada e convidam quem passa pelo lugar a assistir à peça “Family Paradise” (Paraíso Familiar, em tradução livre). Nada do que se vê neste charmoso cantinho da cidade, como em tantos outros lugares de Kiev, lembra que a Ucrânia está, desde 24 de fevereiro de 2022, em guerra com a Rússia de Vladimir Putin.

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Depois de um primeiro período mais sombrio, os moradores de Kiev, conta a designer Liudmyla Svetska, de 32 anos, “entenderam que a vida deve continuar”. A frase diz muito sobre as cenas que podem ser observadas na capital ucraniana atualmente, enquanto em Kharkiv, segunda maior cidade da Ucrânia — que foi capital do país durante um curto período no início do século passado —, a quase 500 quilômetros de Kiev, soldados russos lideram uma ofensiva que preocupa seriamente o governo de Volodymyr Zelensky.

— Quando a guerra começou, eu estava fora do país. Pensei muito sobre o que fazer e decidi voltar. Não me arrependo, temos de estar aqui, unidos, trabalhando por nosso país. A Ucrânia não pode parar — diz Mila, como é chamada pelos amigos, enquanto toma uma taça de vinho num restaurante da rede Musafir, muito perto do gigantesco Palace of Sports (Palácio dos Esportes), erguido em 1960 e que lembra a era soviética.

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No ano passado, ela trabalhou na Kiev Design Week, uma das tantas iniciativas dos últimos tempos que tem por trás o desejo de manter o país funcionando, apesar da guerra. Em Kiev e em várias outras cidades, os ucranianos tentam levar uma vida o mais normal possível, atentos às notícias que chegam do front.

Aplicativo de alerta

O som das sirenes faz parte do dia a dia das pessoas, que, em sua grande maioria, têm em seus celulares o aplicativo Air Alert. Quando uma sirene toca, o aplicativo avisa imediatamente se o que foi lançado pelos russos é um míssil balístico ou de cruzeiro, informação essencial para que os ucranianos entendam se devem ou não se refugiar no bunker mais próximo. Moradores da cidade explicam que mísseis balísticos são mais perigosos, pois são mais difíceis de derrubar.

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Todos buscam tranquilizar estrangeiros nervosos, afirmando que “Kiev tem o melhor sistema de defesa aérea do mundo” — algo que não pode ser dito de outras cidades, para as quais Zelensky vem pedindo mais ajuda a seus aliados. As expressões faciais quando as sirenes tocam refletem uma convicção absoluta de que a capital ucraniana é um lugar seguro. Ninguém interrompe suas atividades, a menos que trabalhe numa grande rede de supermercado ou num teatro, entre outras raras exceções.

A capital retomou seu ritmo anterior à invasão russa de mais de dois anos atrás. Os pequenos cafés, que estão por todos os lados, ficam cheios pelas manhãs e no fim da tarde; teatros, cinemas e óperas retomaram suas funções; as praças são lugares de encontro e muitas vezes com direito à música ao vivo; os jovens se reúnem a toda hora, andam em patinetes elétricas por toda a cidade e vão a festas, sempre respeitando o toque de recolher, que começa à meia-noite e termina às 5 da manhã. O turismo estrangeiro é escasso, mas não nulo. Na Catedral de Santa Sofia, uma das mais importantes da cidade, um casal israelense disse ter escolhido Kiev para passar suas férias por sua beleza e história. No mesmo local, uma excursão escolar ocorria normalmente.

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No cassino Billionaire, localizado ao lado do Hotel Intercontinental, os eventos foram retomados e, segundo conta Vladyslava, de 27 anos, que trabalha no local, “aos poucos estamos recuperando a normalidade”. Dentro do cassino, onde não é permitir tirar fotos, máquinas de última geração — trazidas de outros países europeus e dos Estados Unidos — atraem clientes ucranianos de todo o país.

— Recebemos poucos estrangeiros porque chegar aqui é muito difícil. Mas estamos indo bem, reabrimos há quatro meses e temos noites cheias — comenta a jovem ucraniana, que só muda o tom quando é perguntada sobre a guerra, assunto que muitos em Kiev tentam evitar. — Meu namorado foi recrutado e eu penso em estudar enfermagem para ajudar também. Estamos avaliando o que fazer, é duro, já perdi amigos e familiares — desabafa Vladyslava, quase sussurrando.

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Ela, como muitos ucranianos, preferem conversar sobre outros assuntos. Falar sobre a guerra dificulta levar adiante o mantra de “a vida deve continuar”.

Resiliência feminina

As ucranianas são um símbolo da resiliência e resistência da sociedade. Algumas são voluntárias na guerra, e muitas outras praticam essa resistência em pequenas e grandes decisões de suas vidas. Oksana Pohorilko engravidou de seu primeiro filho em junho de 2022, poucos meses após o início da guerra, e garante que foi uma das melhores decisões de sua vida.

— A reação de nossos amigos e familiares foi ‘finalmente uma boa notícia' — conta Oksana, que sofreu um pouco com os apagões durante a gravidez já que mora no 13º andar.

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O casal buscou um hospital que tivesse bunker, mas tudo correu bem, contou a jovem ucraniana. Agora, com seu filho pequeno, ela se esconde no banheiro quando as sirenes tocam, sem dramatizar.

— Vivemos uma vida normal em Kiev e tudo está funcionando. Somos ucranianos e vamos ficar aqui — faz questão de frisar.

A moda é outro símbolo da resistência ucraniana. Estilistas como Fedor Vozianov, que tem um showroom escondido num clássico prédio de Kiev, ao qual se tem acesso após atravessar um pequeno túnel que lembra séculos passados, produzem a todo vapor. Uma equipe de quatro costureiras trabalham para ele num sótão úmido, mas, ao mesmo tempo, protegido em tempos de guerra.

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— A mulher ucraniana é muito ligada em moda, nossas principais clientes são de nosso país e têm entre 18 e 80 anos — conta Vozianov, que após o início da guerra passou a utilizar símbolos nacionais em suas produções.

Suas vendas são principalmente através das redes sociais, mas o estilista também gosta de organizar eventos no pequeno pátio que compartilha com a grife ucraniana Oliz, famosa por seus lenços com imagens e símbolos da cultura nacional.

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Em Kiev, todos conhecem alguém que está no campo de batalha, e, em muitos casos, já perderam amigos e familiares. Mila conta que um de seus amigos está perto de Kharkiv, e que a comunicação com ele é cada vez menos frequente. A situação não está fácil, e ela espera que ele venha a Kiev para poder conversar. Na capital, enfatizou a designer ucraniana, “todos adotam um modo de vida normal, porque é a única maneira de poder continuar”.

— Minhas amigas que moram no exterior aproveitam as visitas a Kiev para ir na manicure e cortar o cabelo, porque aqui é mais barato — comenta Mila, que, ao contrário dos que rumaram para um exílio forçado, decidiu ficar no país e participa de vários projetos da sociedade civil que buscam, em suas palavras, “promover o desenvolvimento da Ucrânia apesar da guerra”. — Estamos recebendo recursos do exterior e eles devem ser bem investidos. Se ficarmos paralisados por nossos traumas nosso país também ficará — conclui esta jovem ucraniana, que nasceu duas semanas após a independência do país, em 1991.

*Repórter viajou a convite do governo ucraniano