Internacional
Em uma cidade de antigo misticismo judaico, israelenses se armam para a luta
Em Safed, centro da cabala, cidadãos comuns passaram a carregar armas de guerra após os ataques de 7 de outubro de 2023
Eyal Ben-Ari colocou o rifle de assalto em seu ombro enquanto saía, na ponta dos pés, em sua casa rosada, tentando não acordar sua mulher e seus cinco filhos. Caminhando até uma sinagoga em Safed, cidade próxima ao Mar da Galileia que há séculos é conhecida como o centro da cabala, o antigo misticismo judaico, disse não se sentir bem com a arma.
TPI: Alemanha diz que cumprirá ordem de prisão do tribunal contra Netanyahu caso seja emitida
Decisão do Gabinete de Guerra: Israel autoriza retomada de negociação sobre libertação de reféns após publicação de vídeo de militares sequestradas
Com medo do rifle ser roubado, dorme com ele sob seu travesseiro. Depois que seu filho de 13 anos apareceu com uma réplica de arma, Ben-Ari considerou devolver o armamento real, questionando a decisão se se juntar a uma milícia civil que lhe deu o rifle.
— Sinto que é muito…artificial — disse, tentando encontrar a palavra certa, enquanto olha para a arma. — Não é humano, não é vida.
Na sinagoga, homens com barbas acinzentadas e roupas pretas, todos membros do movimento ultraortodoxo Chabad, deram tapinhas nas costas de Ben-Ari. Estavam felizes com sua presença e com a arma — era a única no ambiente, mas não era algo tão incomum. Nesta pequena cidade próxima à fronteira libanesa, onde os foguetes do Hezbollah caíram em bom número nos últimos meses, a sensação de vulnerabilidade fez com que os moradores se armassem.
Ali, como no restante de Israel, as pessoas temem um novo ataque, como o de 7 de outubro, quando militantes do grupo terrorista Hamas mataram quase 1,2 mil pessoas em vilas, bases militares e cidades. A polícia e o Exército tiveram uma resposta lenta, e em muitas comunidades a defesa ficou a cargo de voluntários organizados em equipes chamadas de Kitat Konenut.
Antes do ataque, a maior parte dos moradores de Safed não acreditava na necessidade de um grupo semelhante. Por décadas, essa cidade de 40 mil habitantes atraiu um público muito religioso e muito criativo, em busca de uma comunhão com a natureza, arte e vinho, ou orar no seu ponto mais conhecido, um cemitério do século XVI onde rabinos estão enterrados em tumbas azuis, que simboliza a junção do céu e da terra. Madonna, que se converteu à cabala, visitou o local em 2009.
Hoje, os turistas têm medo de ir até ali. Safet, chamada Tzafat em hebraico, é uma cidade sitiada, uma versão em miniatura de Israel, tentando reconciliar Deus, amor e luz com raiva, medo e desejo de proteção.
— As pessoas estão preocupadas — disse o prefeito de Safed, Yossi Kakon, mostrando uma pistola em sua cintura. — Elas querem armas.
100 mil armas
As armas são como as estrelas de Davi em Israel: muito comuns para serem discutidas.
O serviço militar é obrigatório; soldados e reservistas são obrigados a carregar suas armas a todo o tempo, inclusive em locais pouco esperados: com estudantes em ônibus urbanos, levando seus filhos em carrinhos em Jerusalém, ou nos ombros de jovens mulheres na praia em Tel Aviv.
Decisões diplomáticas: Noruega, Irlanda e Espanha reconhecem Estado palestino, e Israel convoca embaixadores em repreensão
O Kitat Konenut também integra o tecido social do país há décadas. Muitos dos grupos foram criados nos kibutz e em vilarejos nas fronteiras depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967. Os primeiros voluntários eram atiradores ou veteranos com treinamento militar. Com o tempo, os grupos pareceram menos necessários, e conforme algumas das armas começaram a desaparecer, foram impostas restrições pelos militares: os armamentos tinham que ser guardados em um depósito, com as chaves nas mãos de um líder local de confiança.
No dia 7 de outubro, alguns desses líderes foram os primeiros a serem mortos. Os que estavam armados salvaram vidas. Na vila de Pri Gan, Azri Natan, um integrante do Kitat Konenut, com cerca de 70 anos, disse que afastou militantes por algumas horas, atirando de trás de uma palmeira.
Histórias do tipo são usadas por políticos que querem ampliar o acesso às armas. Itamar Ben-Gvir, um dos nomes mais radicais do país e que é ministro da Segurança Nacional, diz que é uma prioridade pessoal. Em março, depois de simplificar o processo para comprar uma arma, anunciou a emissão de 100 mil licenças desde outubro, e que mais 200 mil estavam a caminho.
Os críticos dizem que mesmo com todos os sistemas de checagem e treinamento, muitas armas estão sendo dadas, sem a devida preocupação sobre seu impacto na sociedade.
Colonos judeus na Cisjordânia ocupada estão entre os que mais se armaram, no momento em que a violência na região está em seus níveis mais altos desde 2006, quando a ONU começou a registrar ataques.
Afirma jornal: Militares de Israel deram informações e apoio a grupos que atacaram caminhões com ajuda humanitária para Gaza
Com centenas de milícias locais em áreas majoritariamente judaicas, as comunidades árabes não têm o mesmo direito de criar esses grupos armados, incluindo perto das fronteiras. Para eles, que formam cerca de 20% da população, a campanha de Ben-Gvir soa como uma ameaça, uma ferramenta de intimidação ou de violência com o aval do Estado.
Os voluntários de Safed insistem que sua missão é apenas defensiva. A maior parte dos árabes da cidade foi embora ou expulsa após 1948, como parte do que os palestinos chamam de Nakba (“catástrofe”, em árabe). O antigo bairro árabe agora é ocupado por artistas, e a principal mesquita se tornou uma galeria.
Por que Gaza tem tantos campos de refugiados? Entenda o 'direito de retorno', questão-chave no conflito no Oriente Médio
A ameaça para a comunidade judaica está além do horizonte. É uma comunidade que votou majoritariamente em nomes de direita, como Ben-Gvir, e onde muitos se preparam para o pior. Rabinos e civis carregam pistolas, e escolas passaram a ter abrigos para ataques aéreos. Em um armazém do governo, estão guardados vários coletes balísticos.
Ali, as respostas à guerra se encontram em um espectro amplo: por um lado, há o amor incondicional e a ênfase da cabala em levar luz para o mundo, com demonstrações de tristeza pelo sofrimento em Gaza; por outro, há uma crença apocalíptica de que os judeus de Israel são o início de uma guerra santa, uma batalha sangrenta para pôr fim a todas as guerras e produzir um messias.
‘Não podemos contar com ninguém’
Ben-Ari tem uma posição neutra. Em casa, seus instintos paternais foram vistos quando uma de suas filhas acidentalmente derrubou uma jarra de café, e ele apenas sorriu diante da bagunça.
Ele cresceu em um kibutz, e se tornou religioso depois de servir no Exército e ir para a Índia para se tornar um professor de ioga. Ele ri desse período, mas com sua fé e com seu trabalho como assistente social, parece ansioso para ajudar as pessoas a se sentirem melhor. E a arma não ajuda muito.
— Meus clientes têm medo dela — afirma.
Sua mulher também.
— Não gosto — disse, sentada na mesa da cozinha enquanto duas de suas filhas fazem esculturas com argila. — Inicialmente parecia tudo bem, estávamos assustados. Mas e agora?
Ela foi até um quarto e mostrou a réplica de um rifle de seu filho, com um olhar desolado e conformado.
— Os soldados viraram os super-heróis — afirmou. — Todos querem ser como eles.
Veja vídeo: Famílias de reféns divulgam imagens de mulheres sequestradas pelo Hamas para pressionar governo Netanyahu
Ben-Ari disse que tentava explicar ao seu filho que a arma era apenas para defesa, e que “não era algo de que goste”.
Esse também foi um argumento dos líderes locais do Kitat Konenut. Em uma noite, Netanel Belams e Shmuel Tilles, descritos como comandante e subcomandante do grupo, concordaram em conversar em uma loja de vinhos no bairro dos artistas.
Tilles, dono do local, dava as boas vindas aos clientes em busca de uma cerveja artesanal ou um bom cabernet com “Shalom”, ou “paz”, enquanto segurava um rifle com mira a laser. Ele e Belams falaram sobre o serviço militar, e confirmaram ter atuado nas forças especiais. Agora, consideravam que a missão era simples.
— Nosso trabalho é garantir a segurança do povo — disse Tilles.
Eles confirmaram que o Kitat Konenut local foi criado no dia 7 de outubro, quando 15 veteranos em Safed ficaram a postos caso o Hezbollah decidisse invadir Israel. Como isso não aconteceu, eles criaram uma força de ação rápida que atuaria em coordenação com as autoridades caso necessário.
Mais de 100 homens se apresentaram, e entre 60 e 70 foram selecionados. Armas foram dadas e o treinamento pago pelo governo, e tudo estava pronto em uma semana. Muitos dos homens têm barbas, associadas à comunidade ortodoxa, e são conhecidos como “haredim”. Eles integram uma minoria no Exército por conta da longa isenção aos que estudam em seminários, mas sua presença em Safed tem aumentado, e a guerra os tornou mais unidos e organizados.
Pressão sobre Netanyahu: Isenção do serviço militar a israelenses ultraortodoxos chega ao fim em meio à guerra
Politicamente, se mobilizaram para eleger Kakon, o primeiro haredim eleito prefeito. E com o Kitat Konenut, encontraram um novo papel na sociedade. Termos como “Rambo religioso” são citados com certa admiração.
Mesmo assim, em uma crise é difícil saber até que ponto eles vão seguir uma cadeia de comando. Belams afirma que seu papel é ditado por Deus.
— Após 7 de outubro, vimos que não podemos confiar em ninguém, nem nas Forças Armadas, polícias ou no Estado — afirmou, completando acreditar que estava na linha de frente de uma guerra que traria o messias para a Terra.
Tilles disse que lutar não era sua primeira opção.
— Eu gosto de vinho. Não quero fazer isso, é só por causa da ameaça — explicou.
Mas ele afirmou que os mesmos ensinamentos da cabala que dizem a ele para “fazer deste um lugar onde Deus possa derramar paz e amor”, também defendem que “quando alguém tenta te matar, você precisa se proteger em primeiro lugar”.
Ao ser questionado sobre a guerra em Gaza, disse que como o Hamas, e sua opinião, ensina as crianças a odiarem e matarem os judeus, Israel precisa lutar com uma definição mais ampla de defesa nacional.
— É uma guerra. Não existe essa ideia de inocentes — opinou. — Você não pode dizer que temos que dar comida a nossos inimigos para que, um dia, eles voltem para te matar.
Mais lidas
-
1REVIRAVOLTA
Carlos Guruba se mostra insatisfeito com Prefeito-imperador e anuncia providências jurídicas: "Fomos traídos na disputa pelo CSE"
-
2MENTIRA OFICIAL
Prefeitura de Palmeira dos Índios omite pauta real de encontro com lideranças indígenas: o projeto do Parque Aquático em área demarcada
-
3PERDENDO O PODER
Declarações de Prefeito-imperador sobre CSE revelam receio de perder influência no clube com possível patrocínio de 'bet'; ouça o áudio
-
4ANÁLISE
Analista: ameaça da Ucrânia de fazer bomba nuclear se Trump cortar ajuda é 'chantagem desesperada'
-
5GERAL
Pais de filhos de Deolane Bezerra prezam anonimato em meio à polêmica prisão da advogada