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Crítica: Na 'Carmen' de SP com algo de Madonna, faltam convicções a uma bela ideia

Em versão da ópera clássica de Georges Bizet, ação é deslocada para ambientes de alta costura, na Espanha franquista

Agência O Globo - 06/05/2024
Crítica: Na 'Carmen' de SP com algo de Madonna, faltam convicções a uma bela ideia
Crítica: Na 'Carmen' de SP com algo de Madonna, faltam convicções a uma bela ideia - Foto: Reprodução/internet

A encenação da ópera "Carmen", de Georges Bizet, contou com uma bela ajuda do zeitgeist. Enquanto Madonna ocupava praias e páginas no Rio, uma outra cantora e dançarina – que prega amor sem rédeas e liberdade desde 1875 – era elevada a ícone fashion no palco lírico mais prestigiado da capital paulista.

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A concepção desta "Carmen", feita por Jorge Takla em direção associada a Ronaldo Zero, move a ação da Sevilha distante para a Espanha franquista, e a maior parte dos atos ocorre dentro de ambientes fechados de alta costura. Primeiro um ateliê, depois um estúdio fotográfico e, por fim, um desfile. A personagem principal é uma estrela do mundo do estilo, que entra em cena num vestido inspirado em Balenciaga e morre numa extravaganza de looks com temática taurina, em substituição à célebre cena em frente à praça de touros.

Antes de mais nada, é preciso realçar a excelente qualidade musical do espetáculo regido por Roberto Minczuk, que o GLOBO conferiu na estreia da última sexta (3) e que fica em cartaz até 11 de maio. "Carmen" é uma ópera tão consagrada que poucas decisões musicais precisam ser tomadas. Nesses andamentos muito corretos, a soprano italiana a mezzo Annalisa Stroppa (alternada com a moldava Lilia Istratii) cantou com belo timbre, elegância e emprestou boa porção de sensualidade à personalidade, sendo especialmente refinada no convite quase murmurado para que Don José (o bom tenor brasileiro Max Jota, de voz muito bem projetada, que se alterna com outro brasileiro, Giovanni Tristacci) se junte à sua gangue, ao fim do segundo ato.

Também estiveram corretos o Escamillo do barítono argentino Fabian Veloz e a Micaëla da soprano Camila Provenzale, tocante no segundo recado da mãe de José, no terceiro ato – eles se alternam respectivamente com o sul-africano Bonghani Kubheka e a paulistana Marly Montoni. Boa também foi a apresentação das "besties" de Carmen, Frasquita (Raquel Paulin, soprano), Mercedes (Andreia Souza, mezzo) , que elevaram demais os níveis de graça e diversão em cena. Fosse ao lado dos bons comprimários masculinos Dancairo (Johnny França, barítono) e Remendado (Jean William, tenor), fosse dançando e cantando com Stroppa, as duas fizeram de seus conjuntos ótimas peças de sincronia, harmonia e blending de timbres. Ou seja, musicalmente, tratava-se de uma Carmen nada superficial, bem apoiada pelo Coro Lírico Municipal preparado por Erika Hindrikson e ótima apresentação das crianças da Escola Municipal de Música, orientadas por Regina Kinjô.

A concepção de Takla tem grandes momentos. Embora recorra muito à suspensão da descrença (é difícil entender por que crianças e soldados se misturaram a seguranças e modelos num ateliê de costura), a cena do primeiro ato é muito bem resolvida: é genial a cenografia de Nicolás Boni nos dando a visão de um camarim à direita, onde vemos uma Manuelita em desespero depois de ter seu rosto desfigurado por Carmen por uma discussão besta. Poucas montagens dão atenção a este detalhe perverso da personagem, que é fundamental para entender a natureza da personagem repetidamente apresentada, nos últimos anos, como uma mulher feita só virtude e liberdade.

Também a taberna do segundo ato, agora transformada em estúdio fotográfico de Lilas Pastia, é um triunfo de perspicácia e capacidade de reinterpretar enredos com novos contextos. Belo também é o quarto ato, uma mansão de altíssimo pé direito, em que o desfile se desenrola diante de uma plateia de VIPs.

O problema é que nem sempre Takla apresentou as convicções necessárias ao êxito de sua primeira ideia. Os figurinos de Pablo Ramírez são, de fato, fundamentais para o deslumbramento trazido pela encenação, e é bem-vinda a ousadia de reposicionar uma ópera frequentemente encenada, ao menos para espectadores que viram as "Carmens" mais ortodoxas de Rio (Julianna Santos) e São Paulo (Rodolfo García Vázquez), no ano passado. Só que, depois dos dois primeiros atos, a ideia de mundo fashion franquista passou a ser pouco mais que uma distração, até que ganhou um fim abaixo das expectativas criadas. Surgem perguntas: e se Escamillo deixasse de ser toureiro e fosse, ele mesmo, o chefe da maison, o estilista obcecado pelo tema taurino-goyesco que apresenta sua coleção de looks toureiros surrealistas, diante dos urros da plateia sentada? E se o aspecto de modelo cultuada fosse mais enfatizado, por meio de pôsteres da própria Carmen, nos cenários em que, sim, há pôsteres?

A direção do quarto ato foi sobretudo problemática porque, ao longo de toda a encenação, Takla mostrou um especial carinho pela direção de movimento de coro e figurantes, dando alto grau de realismo e convicção à ideia. Ao recorrer a um grande painel vazado por cinco portas que desce e cobre toda a extensão do palco, o encenador criou uma armadilha para si mesmo.

Se é verdade que funciona bem no primeiro ato, como um ambiente mais reservado para as discussões entre José e Carmen, no quarto ele parece asfixiar a ação: reduz um espaço em que Stroppa e Jota mal se dirigem um ao outro, enquanto são observados pelas mesmas figuras surrealistas do desfile, cercando os artistas como bailarinos de Madonna num pesadelo andaluz. Nem essas figuras entram pelas portas, nem elas dão espaço ou efeito ao realismo da cena. Ainda que pareçam evocar as escuridões de Goya, o resultado é um anticlímax, em contraste com uma concepção que tinha muito a revelar de si. Talvez a cena ganhasse fluidez e impacto, ainda que sacrificasse o efeito background escrito por Bizet, caso os dez minutos da agonia de Carmen ocorressem no próprio ambiente do desfile.

Cotação: razoável