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Ex-ditador Alberto Fujimori tenta reescrever sua história no TikTok

Cinco meses após sair da prisão, peruano, que governou o país com mão de ferro entre 1990 e 2000, apresenta versão parcial e tendenciosa de seus anos como presidente

Agência O Globo - 06/05/2024
Ex-ditador Alberto Fujimori tenta reescrever sua história no TikTok

Aos 85 anos, após uma década e meia atrás das grades por crimes contra os direitos humanos, o ex-ditador do Peru Alberto Fujimori, está empenhado em se tornar um influencer. Desde o início de março, quando estreou nas redes sociais, Fujimori acumulou 161 mil seguidores e 449 mil posts com quase três milhões de visualizações no TikTok. Ele também mantém ativas suas contas no Facebook e no Twitter, onde é um usuário ativo. E recentemente lançou seu próprio site sob o título de "o presidente que mudou o Peru".

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Os analistas políticos se perguntam se o peruano-japonês, chamado pelo povo de "chino", que governou o país nos anos 90, está em campanha visando 2026 ou se pretende ser o trampolim midiático que sua filha Keiko precisa para chegar ao poder após três tentativas fracassadas — em que perdeu por pouco. Embora há alguns anos tenha sido promulgada no país uma lei que proíbe que condenados por corrupção de se candidatem a cargos eletivos, o Tribunal Constitucional (TC) deixou a porta entreaberta meses atrás ao declarar inconstitucionais as restrições para os que já cumpriram suas penas. Fujimori cumpriu 16 dos 25 anos a que foi condenado e foi solto em dezembro do ano passado, por uma ordem do tribunal, em desacato à Corte Interamericana de Direitos Humanos, com base em um indulto presidencial concedido em 2017 por "razões humanitárias".

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Do idoso debilitado que saiu da prisão de Barbadillo com um tanque de oxigênio para o influenciador que passeia pelos shoppings e tira fotos com seus seguidores, há uma mudança abismal. Para o bem ou para o mal, Fujimori nunca deixou de ser um grande influenciador da política peruana. E como tal, está em busca de novas audiências. Jovens que ainda engatinhavam quando ele estava no governo ou que nem sequer tinham nascido. De todo o seu conteúdo, os vídeos mais controversos são aquelas que ele batizou de "videomemórias", clipes de cerca de quatro minutos onde ele se propõe a reescrever sua imagem.

No primeiro capítulo de uma saga que até agora tem cinco partes, o ex-autocrata afirma que não é um assassino, que apenas defendeu o povo e que sua única culpa é ter vencido o terrorismo. Em um dos ambientes da casa de sua filha Keiko, onde ele mora, Fujimori fala para a câmera:

— O terrorismo e seus aliados distorceram a história: eles transformaram o Sendero Luminoso e o MRTA [Movimento Revolucionário Túpac Amaru] em vítimas e o governo peruano em assassino.

Para o advogado e cientista político Juan de la Puente, a afirmação é falsa, pois não há nenhum processo judicial ou político que indique que o Estado foi assassino:

— O que foi apontado é que houve uma prática sistemática de violações aos direitos humanos no período de violência. Não houve nenhum esforço por parte dos grupos políticos para transformar o Sendero em vítima. Pelo contrário, depois que Fujimori caiu, os processos contra o terrorismo continuaram — ele diz.

O cientista político José Alejandro Godoy, por sua vez, faz uma leitura nas entrelinhas sobre o fato de Fujimori ter usado o termo "aliados":

— Isso significa que as organizações de direitos humanos e o jornalismo investigativo que expuseram os eventos relacionados ao grupo paramilitar Colina são aliados do terrorismo. É uma dicotomia em que qualquer um que critique seu governo não é apenas um inimigo, mas um cúmplice dos grupos terroristas.

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No vídeo inicial, Fujimori garante que não há uma única prova contra ele e que foi condenado injustamente, basicamente por ser o chefe de um governo acusado de crimes.

— Fujimori está tentando confundir um público que não necessariamente entende os termos de responsabilidade penal. A teoria do domínio do fato implica que há um conjunto de pessoas que são os autores intelectuais de um evento, que dominam uma organização e são os que dão as ordens ou os operadores. Fujimori não disparou uma arma, mas tinha conhecimento dos crimes do Grupo Colina [grupo paramilitar e esquadrão da morte anticomunista] e era o único que poderia evitá-los. Essa conclusão foi alcançada após um grande volume de evidências em um processo que durou 162 audiências — explica Godoy, autor de "O Último Ditador", um livro que analisa sua década no governo.

O Grupo Colina assassinou e desapareceu com 49 pessoas sob a suspeita de serem subversivas.

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Narrativa personalista

Um evento célebre foi o final de seu mandato, quando em novembro de 2000, dois meses após a divulgação de um conjunto de subornos pagos por seu principal assessor e homem de confiança, Vladimiro Montesinos, Fujimori renunciou à presidência por fax.

Ele dedica um capítulo ao incidente, onde se justifica alegando uma "operação em andamento para destituí-lo", mas afirma que sempre esteve em seus planos voltar ao Peru para se defender pessoalmente. E que por isso pegou um avião para o Chile cinco anos depois, em 2005, para "conseguir um blindagem jurídica" que permitisse que ele voltasse ao Peru com um número limitado de processos. Juan de la Puente rebate sua versão.

— É uma grande mentira que ele tenha querido prestar contas. Ele se opôs ao processo de extradição quando pousou no Chile. Devemos lembrar também que ele se candidatou ao Senado japonês. Alguém que pretende voltar para prestar contas não vai se candidatar ou querer fazer vida política em outro país. É claramente uma tentativa de reescrever a história de seu governo, agora com sua voz e sua imagem, insistindo em uma narrativa personalista, onde ele busca ser o 'autor da reconstrução do país e da luta contra o terrorismo' quando o contexto foi muito mais complexo".

Em outro de seus vídeos, Fujimori afirma ainda ser o autor intelectual do operativo Chavín de Huántar, que resgatou 72 reféns na residência do embaixador japonês em 1997.

— Apareceu para mim em um sonho — conta o ex-ditador, sobre os túneis que permitiram a entrada surpresa dos militares para abater os membros do MRTA e libertar os cativos. Um sonho que ele transformou em um livro chamado "Chavín de Huántar: o resgate sonhado".

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No entanto, esta é uma versão que não foi confirmada pelos altos comandos que participaram da operação. Em um relatório para o jornal El Comercio, o coronel José Williams Zapata diz que "foi produto de conversas com mais de uma pessoa". O ex-comandante geral do Exército, César Astudillo Salcedo, que liderou uma equipe de resgate, em seu livro "Chavín de Huántar, o legado", também não o menciona que Fujimori tenha sugerido a ideia em suas 269 páginas.

— Embora Fujimori tenha sido o ator mais visível durante os 126 dias em que durou a ocupação da embaixada japonesa, e o resultado tenha sido seu mérito político, o maior mérito foi dos próprios comandos e, portanto, de nossas Forças Armadas — diz Zapata.

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Na entrega mais recente de suas videomemórias, Alberto Fujimori destaca que, se os principais líderes terroristas, como Abimael Guzmán ou Víctor Polay Campos, não tivessem sido capturados, provavelmente o país teria que aceitar um acordo de paz com os grupos subversivos. Nesse sentido, criticou o presidente da Colômbia, Gustavo Petro:

— Basta ver o que está acontecendo hoje com o nosso povo irmão colombiano. O presidente hoje na Colômbia era um guerrilheiro do M-19 — afirma.

Atualmente, Fujimori está sendo processado por um caso pendente: o massacre de Pativilca, no qual seis pessoas foram cruelmente torturadas e assassinadas em 1992 sob acusação de serem terroristas. Ele também constrói seus vídeos para exercer sua defesa no caso. Nesta segunda-feira, completam-se cinco meses desde que ele foi solto da prisão. Sem a cânula nasal e sem o balão de oxigênio, Fujimori continua a se consolidar como um verdadeiro tiktoker.