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Deize Tigrona, pioneira do batidão: 'Respeito muito a história da Anitta, mas ela é o funk pop, né?'

MC troca ideias com Michelle Miranda, autora de livro sobre mulheres no gênero musical carioca: ‘Não tem rolê tranquilo’, diz a cantora, recorrendo à expressão que dá nome a seu novo disco

Agência O Globo - 01/05/2024
Deize Tigrona, pioneira do batidão: 'Respeito muito a história da Anitta, mas ela é o funk pop, né?'

O funk carioca tem história e ela começa de forma pouco favorável à parcela feminina da população: oficialmente, a música que inaugura o gênero, em 1989, é “Melô da mulher feia”, adaptação do DJ Marlboro, Nirto e Abdúla para um grito de galeras entoado por cima do rap “Do wah Diddy”, do grupo americano 2 Live Crew. A partir de um original pornográfico e para lá de misógino, inventado pelos moleques frequentadores dos bailes das equipes de som, os compositores chegaram a uma letra amaciada cujo refrão explode nos versos “mulher feia cheira mal como urubu”.

— Hoje essa música é bem pesadinha, né? Tinha também na época um funk que falava “pequenininha com um mamão tão grande” (“Melô da Paula”, do União Rap Funk), e isso me pegava bastante, porque na época eu já tinha uns peitos grandes. Eu não me importava com o funk da mulher feia, mas com esse da Paula, sim — diz Deize Tigrona, 45, pioneira MC mulher do funk, que no fim de março pôs nas plataformas de streaming o álbum de inéditas “Não tem rolê tranquilo”.

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A jornalista Michele Miranda, 39, autora do recém-lançado “Funk delas: a história contada pelas mulheres”, adaptação de sua dissertação de mestrado, acrescenta:

— Eu não entendia que “mamão” era isso, eu achava que era “uma mão” e cantava essa música, tinha o CD... É difícil ser mulher, em todos os campos, né? O que eu fiz ali foi um recorte de como é difícil a mulher dentro do funk. Esse livro nasce do meu incômodo de não se ter mulheres ou de ter muito poucas mulheres nos bastidores do funk.

DJ que abre show de Madonna

Reunidas pelo GLOBO para uma conversa na casa de Deize, na Cidade de Deus, a MC e a escritora trocaram impressões sobre o quanto as mulheres passaram, de 1989 para cá, até conseguirem o respeito e a representatividade de uma Anitta ou Ludmilla. No caso de Deize, a caminhada se iniciou nos bailes da CDD, até que uma de suas músicas, “Injeção”, foi descoberta pelo DJ americano Diplo (que no sábado abre o show de Madonna em Copacabana). Ele a usou como base para “Bucky done gun” (2005), faixa que estouraria a MC cingalesa M.I.A. e levaria a novidade do funk carioca ao mundo.

— Nesse início, na comunidade, a gente não tinha essa visão da dificuldade, a gente ia nessa de fazer um lance uma para outra e depois percebia que aquela brincadeira estava trazendo pessoas de fora, que tinha gente em outras comunidades fazendo a mesma coisa e que aquilo dava dinheiro — conta Deize. — Só bem mais tarde a gente percebeu que estava fazendo uma política feminista, um grito de liberdade e de ousadia, que aquilo era empoderamento. Só com o tempo vi que não era para eu ter receio do meu corpo. E que era para a gente repudiar o “Rap da mulher feia”.

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Hoje, Michele acha que o funk ainda é muito desigual em relação aos gêneros:

— Você entra nos aplicativos de música, vai nas maiores playlists de funk e vê que a mulher não está lá, ou está lá como feat na música de um cara. É muito difícil uma mulher hoje estourar, a não ser que ela vá para o pop.

Para Deize, “a mulher preta é vista como uma mulher bruta, que sabe fazer o funk, mas o funk bruto, que, quando chega (para o grande público), chega só como referência”.

— Respeito muito a história da Anitta, mas ela é o funk pop, né? Da mesma forma, admiro a Ludmila, que enfrenta muito mais dificuldades para continuar na cena. Se a Ludmilla parar um pouco, ela fica para trás porque esse hate que existe entre ela e Anitta destrói tudo.

‘Quero poder correr no Aterro’

Em “Não tem rolê tranquilo”, Deize Tigrona vai além do funk, trabalhando com um poderoso trio de produtoras mulheres (Iasmin Turbininha, Larinhx e Badsista) e partindo para uma visão mais psicodélica e aventureira do sexo, depois de uma série de experiências que incluíram uma turnê pela Europa, o fim de um longo casamento e o pedido de demissão da Comlurb, depois de muitos anos varrendo ruas.

— O disco veio desse exagero de querer viver com os amigos, conhecendo pessoas e tudo mais. Passei situações que são assim para guardar na memória, são memórias boas, mas, ao mesmo tempo, bem intensas. Meus amigos é que falavam: “Não tem rolê tranquilo!”— conta. — Meu sangue é artístico, eu tenho essa potência, eu conheço pessoas que fecham comigo. Eu tô aqui na comunidade mas quero me mudar para a Zona Sul. Quero poder correr no Aterro!

E Michele, que pensa em transformar “Funk delas” num documentário, também se mostra otimista quanto ao futuro das mulheres no gênero musical carioca/mundial.

— Hoje eu já tenho mais interlocutoras, consegui achar empresárias para o livro, existe a produtora musical Iasmin Turbininha, que ficou muito surpresa quando falaram que ela era a primeira DJ do funk que produzia — diz. — A gente está numa fase no funk feminino em que ainda tem muitas primeiras para virem por aí. É uma história que vai continuar.

“Funk delas: a história contada pelas mulheres”

Autor: Michele Miranda. Editora: Garota FM. Páginas: 184. Preço: R$ 50.