Internacional
Livro revela detalhes, contradições e metamorfoses do 'showman' que virou presidente, Volodymyr Zelensky
Ao GLOBO, Simon Shuster, um dos mais experientes correspondentes em Rússia e Ucrânia, fala sobre a obra e sobre o acesso quase irrestrito que teve ao líder ucraniano
Quando o primeiro episódio de “O Servo do Povo” foi ao ar na TV ucraniana, em novembro de 2015, quem afirmasse que o ator que na série vivia Vasily Holoborodko, o professor alçado à Presidência, estaria no comando do país em menos de uma década, certamente seria tratado como um mau piadista. Mas a história que se desenhou desde então talvez surpreendesse até poetas como Taras Shevchenko, especialmente pelo protagonista inesperado: Volodymyr Zelensky.
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Nas páginas de “O Showman” (Editora Record), o jornalista Simon Shuster, correspondente na Rússia e na Ucrânia por 17 anos, relata episódios da vida de Zelensky, como os seus anos de comediante, e compartilha um pouco da rotina do presidente de um país sob ataque, ao qual teve acesso quase irrestrito por cerca de dois anos. Em entrevista ao GLOBO, ele falou sobre alguns momentos de perigo que viveu ao lado de Zelensky — incluindo na linha de frente e sob bombardeios russos — e discutiu a metamorfose do artista e político inexperiente para um líder em tempos de guerra.
No livro você relata situações de alto risco que passou ao lado do presidente ucraniano. Sentiu medo?
Senti muito medo. Zelensky tem uma tolerância alta ao perigo físico, eu não. É possível traduzir isso como bravura ou imprudência. Lembro como se fosse hoje quando fui com ele para a linha de frente pela primeira vez, em abril de 2021. Os russos estavam começando a se preparar para a invasão e foi assustador. Chegamos muito, mas muito perto mesmo das linhas de frente russas. Ficamos a um quilômetro das posições da artilharia russa, dos snipers. E depois isso se repetiu muitas vezes. Eu sabia que, para escrever o livro, precisaria correr esses riscos com ele. Estava implícito no nosso acordo.
E o que Zelensky respondeu quando você o questionou sobre se expor ao perigo assim tão rotineiramente?
Que era necessário mostrar que ele passava pelos mesmos riscos que estava pedindo que os filhos e filhas de cidadãos ucranianos enfrentassem desde o começo da invasão. Que validava assim o chamamento para que todos se juntassem às forças armadas, lutassem. Ele me disse que considerava imoral e hipócrita ficar em um bunker. E, de forma bastante explícita, propositadamente, enfatizou isso, com câmeras e fotos. É propaganda, mas não significa que é falso. Não é exatamente um show, mas ele muito rapidamente percebeu que aquele teatro também era crucial para se vencer a guerra.
A família de Zelensky falava russo em casa. Em algum momento ele considerou a invasão russa, além da agressão, como uma espécie de traição?
O sentimento de traição foi muito forte em 2014, com a tomada da Crimeia. Como ele cresceu em uma cidade industrial no centro-leste do país, falando russo, se sentia tão ucraniano quanto próximo da população do Donbass e das áreas no extremo leste do país. Aquelas pessoas viam o político Zelensky pela lente do ator, do comediante. Eram fãs de seus filmes, de seu humor, criados, inclusive, em russo. Mas, a partir da Crimeia, ele não teve mais ilusão alguma sobre a Rússia como nação fraterna.
Neste contexto, ele de fato se surpreendeu com a decisão de Putin de invadir a Ucrânia?
Ele ficou sim claramente chocado, não com a invasão em si, mas com sua dimensão. Havia um consenso entre os serviços de inteligência europeus de que, ao baterem o bumbo da invasão, os EUA tinham um comportamento alarmista. Que a análise do governo Joe Biden era exageradas. E que mesmo que as tropas de Putin atravessarem a fronteira, ele jamais tentaria tomar Kiev. Zelensky se preparou para uma batalha concentrada no leste, no Donbass, e, talvez, no nordeste, em Kharkiv. Ele se chocou com o ataque total da máquina de guerra de Putin e logo nas primeiras horas da invasão. Isso ficou mais claro para mim em uma conversa com a primeira-dama, Olena. A família presidencial e seu círculo mais próximo não tinham malas prontas, documentos na mão para uma saída de emergência. Eles todos foram pegos de surpresa. Eles todos, no governo e entre os amigos, achavam que o governo Biden tinha uma postura apocalíptica.
O tamanho da invasão mudou o tamanho de Zelensky, dentro e fora da Ucrânia. Ele vivia à época um momento de frustração no governo?
Sim, sem saber o que fazer para enfrentar os baixos índices de popularidade, que, em janeiro de 2022 não passavam de 20%. Não poderia ser considerado, em nenhuma medida, um líder popular. Era criticado justamente por não ter conseguido estabelecer uma paz duradoura com a Rússia, pacificar o Donbass, promessa central de sua campanha à presidência. Ele achava que era o homem capaz, inclusive pelas razões que conversamos, ele falar russo, se comunicar diretamente com todas as pessoas vivendo em solo ucraniano, de selar a paz com Putin. Naquele momento, ele estava especialmente frustrado. E vi, nos nossos encontros, a frustração se transformar em raiva. E isso, creio, o fez tomar decisões que não foram exatamente bem pensadas.
Por exemplo?
Iniciar um processo contra o ex-presidente Petro Poroshenko, seu antecessor e rival, mesmo sob protesto dos EUA e da Europa Ocidental. Washington dizia, abertamente: é um erro, quando um exército de 200 mil homens se prepara para invadir a Ucrânia, gastar seu capital político com um escândalo que afeta seu maior adversário interno. Mas quando Zelensky, o “showman”, se sente impopular, percebe que não é amado, não é respeitado pelos seus, toma decisões esdrúxulas e ilógicas.
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Quando foi a última vez que você conversou com ele?
No fim de setembro, começo de outubro. Fiquei duas semanas com sua equipe, viajamos juntos pelo país, inclusive de trem até Odessa. E embora a posição dele, à época, na guerra, era muito fraca, ele parecia especialmente forte. Aquilo me chamou a atenção. Não havia carência de notícias ruins: os americanos começavam a sinalizar que o tempo da ajuda sem limites a Kiev estava chegando ao fim. Seus generais afirmavam que a contra-ofensiva iniciada no verão (no Hemisfério Norte) havia falhado. E, mesmo assim, ele parecia surpreendentemente confiante, calmo, preciso em suas decisões.
A guerra tornou Zelensky um líder menos errático?
Exatamente. É isso. Eu o encontrei desta vez vestindo uma espécie de armadura imaginária, um aparato que o possibilita lidar com calma e reagir aos desafios mais sérios de forma serena. Cometo a indiscrição de fazer uma comparação dele com alguns de seus auxiliares mais próximos, que estavam, ao contrário dele, claramente, em pânico. Zelensky seguia projetando força, mesmo em situação tão frágil. Uma habilidade que ele não tinha, desenvolveu com o tempo. Este novo Zelensky parece não levar as más notícias ao pé da letra. Ele vai seguindo em frente, quer continuar pressionando com o que tem, e não me pareceu nem um pouco disposto a desistir ou demonstrou sinais de depressão. Mas essa característica tem lados bons e ruins.
Uma jornalista ucraniana, quando soube que você iria escrever a biografia de Zelensky, te aconselhou: “não seja generoso demais com ele, você não sabe o que ele se tornará”.
Tive essa conversa em junho de 2022, no contexto da censura do governo à imprensa. Ela estava preocupada que Zelensky não seria capaz de abrir mão dos poderes extraordinários que conquistou quando a guerra terminar. E, sim, ainda não sabemos. Mas não vejo especificamente nenhuma pista importante que me indique que ele não planeia um regresso à democracia. Quando pergunto a ele sobre isso, diretamente, ele diz muito claramente, assim: “Simon, é muito simples. Venceremos a guerra. Acabaremos com a lei marcial. e voltamos à democracia". Mas esta jornalista com quem conversei sobre o tema (Myroslava Gongadze) estava preocupada com a possibilidade de não ser tão fácil assim como Zelensky diz. Não sabemos como ele irá lidar com esse processo, e algo difícil, e para qualquer líder, é abrir mão do poder. É algo que todos os ucranianos deveriam se perguntar e para o qual o ocidente precisa olhar com muito cuidado: garantir que os valores e instituições democráticas, centrais na defesa da Ucrânia contra a Rússia, sejam preservados.
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Esta é também uma luta pela defesa das instituições e valores do pós-guerra. E como as eleições nos EUA podem afetar o cenário da guerra e da Ucrânia de Zelensky?
Se Donald Trump for eleito será uma catástrofe para a Ucrânia. A multiplicação de crises causadas por um retorno do trumpismo a Washington deve empurrar a Ucrânia para baixo na lista de emergências internacionais. E Trump é muito direto: ele pretende interromper de imediato qualquer ajuda para Kiev, forçando assim Zelensky a negociar com menos força ainda. Mas ele e sua equipe têm se preparado da melhor maneira possível para esse cenário. Há uma busca de aproximação com figuras importantes do trumpismo, inclusive nas duas casas do Congresso, há neste momento um movimento de se criar laços com os Republicanos. Ao mesmo tempo, investem pesadamente, tempo e dinheiro, na criação de uma indústria bélica de peso, a partir da malha soviética. Eles precisam fabricar suas próprias armas, diminuir a dependência ocidental. É uma corrida contra o relógio, e o tic-tac se acelera em caso de vitória de Trump.
Mas isso é factível?
É um enorme desafio, mas não tão impossível quanto parece. A base industrial-militar da era soviética, com investimento pesado de dinheiro e tecnologia é real. E no âmbito diplomático Zelensky negocia a liberação, pelas grandes potências ocidentais, de liberação de tecnologia. É complicado. Exige um nível de confiança extremo. Mas é um dos elementos mais importantes neste estágio do conflito, precisamos prestar atenção a isso.
E como Zelensky vê a declaração do presidente da França, Emmanuel Macron, de eventual presença militar europeia na Ucrânia?
Ele não considera essa uma possibilidade real, sabe que politicamente isso seria improvável, quase uma impossibilidade. Mas ele vê na fala de Macron um elogio à ambiguidade que lhe é muito útil neste momento. A Rússia não deve ter a certeza de que, em nenhuma situação, a Otan não entrará em Kiev. Ambiguidade estratégica é uma de suas armas neste momento, e Marcon o ajudou. Muda-se o peso das possibilidades e, com sorte, do futuro.
Voltando ao título do seu livro: você mostra como ser um “showman” ajudou Zelensky no começo da invasão. Ainda é um trunfo dele neste momento da guerra?
Sim, definitivamente. Ainda mais hoje. Como disse Zelensky durante a nossa última conversa, com o tempo as pessoas ficam cansadas de assistir ao mesmo programa pela décima vez. Você precisa encontrar novas maneiras de surpreendê-las, de fazê-las acreditar em você, de prender a atenção delas. Acho, inclusive, que o Macron, voltando a ele, se inspirou em Zelensky quando fez aquelas fotos treinando boxe, a coisa do “macho”. É um jogo.
Você vê algum horizonte para o fim da guerra?
Estamos em um estágio de enorme imprevisibilidade. E esta é uma das razões pelas quais Zelensky tem um horizonte de planejamento muito curto, algo que me chamou a atenção de cara. Ele pensa no que pode fazer hoje, esta semana, talvez duas semanas, não mais do que isso. Há negociações multilaterais, a tentativa de se construir uma arquitetura para um futuro processo de paz. Em junho deve ocorrer uma grande cúpula na Suíça em torno da guerra, mas tudo está ainda muito no começo e seu rumo será influenciado decisivamente pela situação, em três meses, no campo de batalha. Neste momento, Putin não vê sentido em negociar. Zelensky, por sua vez. está empenhado em negociar apenas numa posição de força. Não creio que ele seja forçado a sentar à mesa disposto a ceder muito. E ele sabe que regimes autoritários e totalitários podem ser surpreendentemente frágeis. Ninguém pensava que a União Soviética entraria em colapso alguns meses antes de sua implosão, quando Zelensky era um adolescente.
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