Internacional

Análise: no Michigan, tamanho do voto de protesto por Gaza assusta democratas

Biden e Trump venceram com folga as primárias, democrata e republicana, em estado decisivo para a disputa à Casa Branca; mas árabe-americanos mostraram força da campanha que denuncia o apoio de Washington a Israel e 'crítica moral' já inspira outras unida

Agência O Globo - 28/02/2024
Análise: no Michigan, tamanho do voto de protesto por Gaza assusta democratas

Números enganam. A campanha democrata pode escolher olhar para o copo cheio: nas primárias do Michigan, estado decisivo para as eleições de novembro, e que foi às urnas nesta terça-feira, Joe Biden recebeu, até o fim do dia no Brasil, quase 80% dos votos em seu flanco. Mas, sem concorrente real, o presidente deve ter dormido preocupado com o recipiente vazio: a projeção de mais de 100 mil eleitores (ou 15%) da base governista cravando "sem compromisso" na cédula, embalados pela campanha Listen to Michigan. Mais do que o dobro em relação a quatro anos atrás. Entre os republicanos, Donald Trump venceu com folga, mas também viu seus pontos fracos expostos com quase um terço dos eleitores preferindo Nikki Haley, a ex-governadora da Carolina do Sul que, em suas próprias palavras, fez campanha no estado do meio-oeste "por três dias, contra oito anos de meu adversário".

Lançada há três semanas pela comunidade árabe-americana, maioria em cidades como Dearborn, na Grande Detroit, a campanha Listen to Michigan mandou mensagem clara à Casa Branca: "ou passa a apoiar um cessar-fogo imediato em Gaza e suspenda a ajuda militar a Israel, ou não conte com nosso voto em Biden em novembro", como repetiram seus líderes em manifestações desde então. Para se ter uma ideia, em 2016, na disputa final, o ex-presidente Donald Trump venceu a ex-secretária de Estado Hillary Clinton e levou os 15 delegados cruciais para chegar ao poder por apenas 11 mil votos. Cada voto importa em disputa tão acirrada.

Apenas em 2008, quando regras internas do partido impediram dois candidatos de concorrer contra Hillary Clinton — um deles, o então favorito Barack Obama — os números de "sem compromisso", mas no caso disfarçados de apoio ao futuro presidente, superaram a marca desta terça-feira, com quase 40% dos votos, ou 238 mil eleitores. À época, ao contrário do movimento anti-Biden, os descontentes acabaram mobilizando ainda mais a militância democrata pró-Obama.

E o tom deste voto nesta terça-feira, que, teme o quartel-general da campanha Biden, pode se espalhar nas próximas primárias em estados país afora, foi dado pelo prefeito democrata de Dearborn, Abdullah Hammoud, nesta terça-feira, quando votava:

— Marcar 'sem compromisso' não é uma questão árabe ou muçulmana. É uma questão moral.

No Michigan, o resultado das prévias democratas, apontam especialistas, deixou a candidatura à reeleição do presidente refém da comunidade árabe-americana. O Censo americano estima que cerca de 300 mil pessoas de origem árabe vivem na Grande Detroit. Há quatro anos, o grupo, de acordo com pesquisas de boca de urna, foi crucial para a frente de 154 mil votos que garantiu a Biden os 15 votos do estado do meio-oeste no colégio eleitoral.

Ecos de 1968

Coordenadores da campanha à reeleição, como a governadora do Michigan, Gretchen Whitmer, enfatizaram nesta terça-feira que Biden segue focado em resolver a "crise humanitária" em Gaza de forma diplomática e de seguir negociando um cessar-fogo, que pode, segundo a Casa Branca, ser anunciado até segunda-feira. E que nada impede os eleitores que votaram "sem compromisso" nesta terça cravarem Biden em novembro.

Mas em Dearborn, Layla Elabed, irmã da deputada federal democrata de origem palestina Rashida Tlaib, e outros líderes, celebraram os números anunciando que a "campanha anti-guerra" seguirá para outros estados nos próximos capítulos das primárias. E para a Convenção Democrata em julho, na mesma Chicago que em 1968 viu os pacifistas contrários à Guerra do Vietnam protestarem por sete dias na convenção que homologaria o vice-presidente Huber Humprey. O resultado à época foi uma vitória decisiva nas urnas dos republicanos, com Richard Nixon traduzindo as imagens de Chicago como "o partido do caos". Mais de meio século depois, soldados americanos não estão na Faixa de Gaza, mas o apoio a Israel sangra Biden à medida em que aumenta o número de mortos no enclave.

Os números de Michigan nesta terça-feira são tudo o que a campanha democrata não queria — o risco de transformar as eleições em um referendo sobre o governo Biden e não sobre o de seu adversário republicano. O dedo apontado para a política externa da Casa Branca e não pela ameaça à democracia representada por Trump, entre outros motivos, por sua atuação durante o ataque ao Capitólio após a confirmação de sua derrota em 2020.

E Biden ainda teve uma outra dor de cabeça ontem: um dos principais grupos que financia a candidatura de Robert Kennedy Jr., independente, anunciou que conseguiu reunir o número necessário de assinaturas para incluí-lo na cédula em dois estados decisivos: Geórgia e Arizona. Todas as pesquisas mostram que, no momento, ele tira mais votos de Biden do que de Trump. Em 2020, Biden venceu na Geórgia com uma vantagem de apenas 0,2%. No Arizona, de 0,3%

Entre os republicanos, por sua vez, é impossível imaginar outro candidato à Casa Branca que não se chame Donald Trump, vitorioso em todas as prévias até o momento. Mas sua vitória gorda no Michigan também esconde problemas sérios. A ex-governadora Nikki Haley teve quase um terço dos votos e subiu o tom após os primeiros resultados serem divulgados, afirmando que escolher Trump equivale a "suicídio" para os EUA, que os republicanos estão num "barco furado" e que seus votos eram prova de que ele não conseguirá vencer em novembro. Embora as média das pesquisas, hoje, mostre um empate técnico entre o republicano e Biden no voto popular, a ex-embaixadora dos EUA na ONU, no entanto, argumenta que Trump tira votos do partido, e não acrescenta.

– Trump fez campanha em Michigan por oito anos, eu por três dias. E ainda assim um terço de quem foi às urnas nesta terça-feira para votar com os republicanos o fez para votar contra ele — afirmou, em entrevista à CNN logo após a votação encerrou no estado, se referindo aos resultados parciais até aquele momento.

Até o fim do dia, Trump não havia se manifestado. Vitórias gordas podem pesar mais do que se imagina.