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'Corajosa e rebelde': Quem foi a beata Mama Antula, primeira santa argentina canonizada neste domingo

Maria Antonia de Paz y Figueroa teria sido responsável por dois milagres, sendo o mais recente em 2017; celebração contou com a presença de várias autoridades argentinas, incluindo o presidente Javier Milei

Agência O Globo - 11/02/2024
'Corajosa e rebelde': Quem foi a beata Mama Antula, primeira santa argentina canonizada neste domingo
Quem foi a beata Mama Antula - Foto: reprodução

Exatamente às 9h45 (6h45 no horário de Brasília) deste domingo, o Papa Francisco leu a fórmula de canonização "Beatam Mariam Antoniam a Santo Ioseph de Paz y Figueroa" e tornou Maria Antonia de Paz y Figueroa a primeira santa argentina. A celebração, que ocorreu na Basílica de São Pedro, foi marcada pelo abraço inesperado entre o Pontífice e o presidente da Argentina, Javier Milei, líderes de ideologias opostas — mas que compartilham a mesma nacionalidade da beata.

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Conhecia como Mama Antula, a beata é considerada a primeira defensora dos direitos humanos na Argentina durante a época do vice-reinado colonial espanhol do Rio de La Plata, segundo seus biógrafos.

— Ela teve uma vida de compromisso com os excluídos, que eram os indígenas, escravos, mestiços e camponeses — disse à AFP Cintia Suárez, coautora da biografia da santa com a italiana Nunzia Locatelli.

De uma rua de Buenos Aires, Suárez aponta para a monumental basílica neoclássica Nuestra Señora de La Piedad e diz: "Este é o lugar onde a mulher pioneira que defendeu os direitos humanos dos desfavorecidos decidiu ser enterrada".

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Em uma das naves laterais está o mausoléu. Uma estátua a representa vestida com uma capa jesuíta, carregando uma cruz e um livro de orações na mão.

— Ela estava engajada com pessoas que eram consideradas coisas na época colonial. Ela viveu entre 1730 e 1799 — contou Suárez dentro da igreja no bairro central de Congreso, chamado assim devido ao parlamento, que atualmente debate com fervor e tensão social as reformas de extrema direita promovidas por Milei.

A biógrafa, jornalista e antropóloga social explica que "a mensagem de Mama Antula foi muito forte para sua época e inspira as mulheres até hoje".

— Ela foi impulsionada por Jorge Bergoglio (o Papa), que assumiu a responsabilidade de divulgá-la com devoção.

Na basílica, o pároco de La Piedad, Raúl Laurencena, disse à AFP que "o número de pessoas que vêm ao mausoléu aumentou nesses tempos difíceis".

— As pessoas rezam por pão, trabalho e paz. Elas rezam pelo nosso país, que precisa tanto disso — contou.

Mais de 4 mil km a pé

Mama Antula era uma leiga que estava envolvida com os jesuítas, a ordem da Companhia de Jesus da qual Francisco é oriundo, desde que era adolescente.

— Depois de caminhar mais de 4 mil km com seus exercícios espirituais pelas províncias do norte, ela chegou a Buenos Aires descalça, com as sandálias em frangalhos e o manto, dado a ela por um jesuíta, quase rasgado, carregando uma cruz de madeira — explica Suárez.

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A tradição oral e escrita concorda que ela foi confundida com "uma bruxa ou uma louca", de acordo com o historiador. "Alguns jovens jogaram pedras nela e, em desespero, ela se refugiou aqui, em uma pequena capela", diz a biógrafa. A basílica foi construída um século depois.

Suárez disse que a agora santa tornou-se mais popular e influente a cada dia:

— Ela conseguiu fazer com que as classes vivessem juntas em harmonia em sua casa de retiro. Era impensável que a esposa do vice-rei, por exemplo, servisse comida ao escravo.

A casa que ele fundou ainda está preservada no bairro de Constitución, perto de uma estação de trem.

Nem freira nem esposa

Seu nome era María Antonia de Paz y Figueroa. Ela nasceu em uma família rica em Villa Silípica, a 40 km de Santiago del Estero, capital da província de mesmo nome (noroeste), onde Suárez também nasceu. Antula significa "Antônia" em quíchua, a língua do povo do norte da Argentina.

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Como sua rebeldia e influência se manifestaram? Suárez conta que "aos 15 anos, idade em que as mulheres entravam em um convento como freiras ou se casavam, ela decidiu por uma terceira opção: ser uma leiga consagrada". Mama Antula então deixou a casa de sua mãe.

— Ela foi atraída pelo mundo intelectual e pelos avanços que os jesuítas haviam trazido da Europa. Ela acolheu meninas órfãs — acrescentou.

Em 1767, a monarquia e o papado expulsaram e baniram os jesuítas. Suárez conta que a beata "observa um vácuo espiritual e social entre os índios integrados às missões jesuítas."

— Eles se sentiram expulsos Ela ficou comovida — disse, acrescentando: — Ela reabriu a casa de retiros e viajou pelas províncias. Ele sabia que era uma atividade arriscada.

'Corajosa e rebelde'

Em Buenos Aires, ela se fez respeitar pelo bispo e pelo vice-rei, que a princípio se recusaram a recebê-la. Um dia, o bispo lhe deu permissão para abrir a casa espiritual e ela respondeu desafiadoramente: "Vou pensar sobre isso". Naquela época, nenhum padre era ordenado sem o seu consentimento.

— Ela era muito corajosa e rebelde, no bom sentido. Eles a chamavam de mulher forte. Ela usava sua astúcia feminina em um contexto de proibição — enfatiza.

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Os dois milagres testemunhados pelo Vaticano foram curas inexplicáveis. Por sua intercessão, "em 1905, a freira Vanina Rosa, que havia sido despejada devido a uma infecção generalizada, se recuperou", explica Suárez.

— Em 2017, ouvimos falar do caso de Claudio Perusini, um argentino que está se recuperando de um derrame. Os médicos disseram que nada poderia ser feito — lembrou.

O homem esteve presente na celebração e, para Igreja Católica, teria sido o milagre de Perusini o marco que permitiu a canonização de Mama Antula, pontuou jornal argentino Clarín.

Suárez documentou mais de 300 cartas manuscritas encontradas nos Arquivos do Estado em Roma.