Internacional

Além do Grupo Wagner: como a América Latina se tornou celeiro de companhias militares privadas

Conferência na Cidade do Panamá discutiu o crescimento de empresas que muitas vezes são associadas a atividades ilícitas e até a assassinatos de figuras públicas

Agência O Globo - 17/12/2023
Além do Grupo Wagner: como a América Latina se tornou celeiro de companhias militares privadas
companhias militares privadas - Foto: Reprodução

Na madrugada do dia 7 de julho de 2021, um grupo de homens fortemente armados invadiu a residência do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, e o assassinou, no momento em que o país enfrentava uma grave crise política. Conforme os detalhes do magnicídio começaram a surgir, ficou claro o papel de uma empresa de prestação de serviços de segurança baseada em Miami: a CTU Security, cujo dono, Antonio Intriago, contratou os assasinos de Moïse. Ele está preso desde fevereiro.

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O episódio do Haiti se somou a outras evidências do avanço dos grupos de prestação de serviços militares e de segurança na América Latina. Segundo números oficiais, o setor ostenta 16 mil empresas, que empregam 2,4 milhões de pessoas e não raro operam fora da lei, como a CTU Security. Recentemente, um novo ator passou a integrar essa equação: desde 2019 o Grupo Wagner, ligado ao Kremlin, tem presença na Venezuela.

Como entender a atuação das empresas de segurança na América Latina e estabelecer protocolos para evitar que se tornem milícias privadas, alheias à lei ou a controles das forças de seguranças dos países? As questões nortearam uma conferência organizada pelo Departamento de Estado dos EUA, com a participação de acadêmicos, representantes de organismos internacionais, do setor de segurança e de autoridades da região.

O GLOBO foi o único veículo de imprensa a acompanhar o evento, ocorrido na Cidade do Panamá sob o modelo “Chatham House”, quando o conteúdo das conversas pode ser divulgado, mas não como cada participante se manifestou individualmente.

Um ponto levantado nos primeiros painéis foi a necessidade de não tratar o setor de segurança como uma entidade única. Afinal, ele engloba desde companhias com veteranos de guerra e armas pesadas, como o Wagner, até firmas pequenas que fornecem vigilantes para mercados em localidades no interior da Guatemala ou do Brasil.

Muitos operam na legalidade, seguindo normas internacionais sobre o respeito dos direitos humanos e a legislação local — em conversas durante a conferência, o GLOBO ouviu de representantes de empresas a queixa de que o setor sofre indevidamente de uma “má fama” que, segundo eles, cabe a poucos atores. Entre as funções mais requisitadas pelos clientes está a proteção de áreas de exploração econômica, como minas e poços de extração de petróleo, além da proteção de políticos. A questão é que nem sempre é possível estabelecer onde começa e onde termina uma atividade legal.

Mercenário x legalidade

A existência de mercenários é quase tão antiga quanto a Humanidade. Há menções aos que vendem seus serviços de guerra no Velho Testamento, e muitos conflitos na antiguidade contaram com soldados contratados. Com o século XX, vieram as leis para regular e banir os mercenários, mas o fim da Guerra Fria e o desmantelamento de conceito de soberania nacional em várias regiões foi um convite para uma “repaginação”, agora sob a alcunha de “empresas de prestação de serviços militares”. Afinal, as normas internacionais não são exatamente claras ao discernir quem é mercenário e quem oferece legalmente seus serviços de segurança pesada.

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Neste contexto, a Colômbia serviu como um celeiro para a expansão do setor. Em meio à guerra contra as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), Bogotá flexibilizou regras para a formação de grupos locais de segurança em áreas rurais, que não raro se fundiam com milícias maiores, a mais famosa delas as AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia), desmantelada em 2006.

A grande quantidade de combatentes armados, treinados — inclusive pelos EUA — e mal pagos foi um presente para as empresas militares privadas, que no começo do século já prosperavam em vários cantos do planeta. Em 2016, uma estimativa da Faculdade Real Dinamarquesa de Defesa afirmou que um em cada quatro combatentes americanos na Guerra do Afeganistão (2001-2021) era ligado a uma companhia privada.

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Além do magnicídio no Haiti, onde 26 colombianos participaram da operação, cidadãos do país que trabalhavam em empresas militares privadas também foram acusados de envolvimento no golpe que depôs Manuel Zelaya em 2009, em Honduras. Desde a invasão da Ucrânia, em fevereiro do ano passado, centenas de colombianos deixaram suas casas rumo ao front, combatendo as forças russas em troca do pagamento em dólares. Por sinal, a questão econômica é um fator crucial para o recrutamento nas companhias militares privadas — na morte de Jovenel Moïse, os acusados foram convencidos a participar da missão pelo salário de US$ 3 mil (R$ 14,8 mil) mensais.

Um tema que provocou discussões até certo ponto acaloradas na conferência foi sobre como definir e controlar as operações das empresas militares privadas, seja na contratação, seja na oferta dos serviços. Como um dos panelistas declarou, “nós [América Latina] somos ótimos em elaborar leis”, mas o cumprimento deixa a desejar.

Estabelecer quando uma determinada empresa cruza a linha da legalidade é igualmente complexo, uma vez que muitas têm sede em países a milhares de quilômetros de distância, e conseguem burlar sistemas de monitoramento de voos e registros fiscais usando "laranjas" ou companhias de fachada. A sociedade civil, voz importante para denunciar abusos, é calada por intimidações, agressões e, não raro, assassinatos de jornalistas e lideranças comunitárias. E autoridades, como demonstrado na conferência, podem ser coniventes com determinadas empresas, seja por elas atuarem em regiões onde o Estado não tem qualquer tipo de controle, seja por interesses próprios.

Não bastassem as complexidades regionais, em 2019 surgiram indícios de que um ator externo do setor de segurança privada estava fincando posição na América Latina. O Grupo Wagner, fundado por Yevgeny Prigojin, iniciou operações na Venezuela, país com o qual o Kremlin nutre excelentes relações. Uma das missões seria a proteção de Nicolás Maduro — um ano antes, em agosto de 2018, dois drones com explosivos foram detonados perto de um local onde ele fazia um discurso. O ato foi considerado uma tentativa de homicídio.

Na conferência, foi difícil não relacionar a presença do grupo, hoje ativo na Ucrânia, Síria e em uma série de nações africanas com a crise instaurada pelo governo de Maduro sobre o Essequibo, região da Guiana reivindicada por Caracas. Embora opinem que a chance de um envolvimento da organização em uma hipotética invasão seja baixa, os debatedores apontaram que o apoio poderia ocorrer de outras formas, como através de treinamento ou das conhecidas táticas para burlar sanções sobre a venda de armas pesadas.

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Há, por outro lado, um cenário mais plausível. Em 2024, a Venezuela deve realizar eleições, sob intensa pressão externa por uma votação livre, e a ameaça de novos protestos contra o regime, especialmente se a principal candidata oposicionista, Maria Corina Machado, não puder concorrer — em julho, ela foi inabilitada por 15 anos, e mesmo assim recebeu 93% dos votos nas primárias da oposição, em outubro. A votação acabou suspensa pelo Suprema Tribunal, dominado pelo chavismo.

Uma eventual situação de instabilidade poderia justificar internamente o emprego do Grupo Wagner como apoio à repressão estatal. Ironicamente, um cenário que aproximaria a organização transnacional, braço militar do Kremlin e alvo de sanções em dezenas de países, dos grupos irregulares de segurança que encontraram na América Latina um porto seguro para suas operações.

O jornalista viajou ao Panamá a convite de CRDF Global, organização sem fins lucrativos parcialmente financiada pelo Congresso dos EUA, e do Departamento de Estado dos EUA.