Economia

Bêbados e sonolentos: nos EUA, controle de tráfego aéreo sofre com falta de pessoal e problemas de saúde mental

Número de profissionais caiu 9% desde 2011. Para atender demanda, há casos de jornada de dez horas por dia, seis dias por semana

Agência O Globo - 03/12/2023
Bêbados e sonolentos: nos EUA, controle de tráfego aéreo sofre com falta de pessoal e problemas de saúde mental
Um controlador de tráfego aéreo foi trabalhar bêbado - Foto: reprodução

Um controlador de tráfego aéreo foi trabalhar bêbado e fez uma piada sobre “fazer um dinheirão de porre”. Outro controlador fumava maconha rotineiramente durante seus intervalos. Um terceiro trabalhador ameaçou com violência e então “empurrou agressivamente” um colega que estava direcionando aeronaves.

Novas patologias: Ministério da Saúde inclui burnout, tentativa de suicídio e abuso de drogas em nova lista de doenças relacionadas ao trabalho

Como se sair bem em reuniões no trabalho? Consultora de altos executivos responde

Os incidentes são exemplos extremos, mas se enquadram no padrão que revela vulnerabilidades numa das mais importantes camadas do sistema de segurança da aviação.

Nos dois últimos anos, controladores de tráfego aéreo submeteram centenas de reclamações ao disque-denúncia da Administração Federal da Aviação (FAA, em inglês, órgão regulador do setor nos EUA). As reclamações descrevem problemas como perigosa escassez de pessoal, problemas de saúde mental e edifícios deteriorados, alguns infestados por insetos e mofo.

O GLOBO no seu celular: Clique aqui para seguir o novo canal Economia e Negócios no WhatsApp

Há pelo menos sete relatos de controladores dormindo em serviço e pelo menos cinco sobre trabalhadores trabalhando sob influência de álcool ou outras drogas. O The New York Times conseguiu resumos das reclamações por meio de um pedido de acesso a informações abertas.

Controladores de tráfego aéreo, que passam horas por dia grudados em monitores ou observando os céus, com a vida de milhares de passageiros sob responsabilidade, são a última linha de defesa contra acidentes. O emprego vem com elevada responsabilidade e pressão intensa, mesmo nas melhores condições.

Mesmo assim, as condições para muitos controladores estão longo de ideal. Uma escassez de pessoal que se espalha nacionalmente pelos EUA — causada por anos de alta rotatividade de pessoal e orçamentos apertados, entre outros fatores — forçou muitos controladores a trabalhar seis dias por semana e dez horas por dia.

Quintou!: Semana de quatro dias faz bem para a saúde dos funcionários, comprova estudo

O resultado é uma mão de obra fatigada, distraída e com baixa moral, que tende cada vez mais a cometer erros, segundo a investigação do The New York Times. As conclusões são baseadas em entrevistas com mais de 70 atuais e ex-controladores, pilotos e autoridades federais, assim como em milhares de páginas de relatórios de segurança e da FAA, que o jornal obteve.

O espaço aéreo americano é notadamente seguro, mas ocorrências potencialmente perigosas têm acontecido, na média, várias vezes por semana neste ano, como mostrou em agosto o The New York Times. Alguns controladores dizem que têm temem que um acidente mortal seja inevitável.

Prazer e trabalho: Quais são os sete empregos que causam mais infelicidade, segundo Harvard

No ano fiscal encerrado em 30 de setembro, houve 503 lapsos de controle de tráfego aéreo categorizados preliminarmente pela FAA como “significantes”, 65% mais do que no ano anterior, segundo relatórios internos da agência revisados pelo The New York Times. Durante esse período, o tráfego aéreo cresceu cerca de 4%.

Os dados são recheados com erros recentes de controladores exaustos. Um controlador no centro de controle de tráfego aéreo de Jacksonville (Flórida) orientou uma aeronave a entrar pelo caminho de outra, culpando mais tarde o fato de que estava cansado e com excesso de trabalho.

Outro controlador numa unidade que monitora os céus do sul da Califórnia disse para um avião voar baixo demais, atribuindo o lapso ao fato de que estava “extremamente cansado”, após trabalhar “continuamente” além do horário.

Pesquisa: Empresas com home office faturam mais do que com trabalho presencial?

“Se posso cometer um pequeno erro como esse, posso cometer um maior”, o controlador escreveu num relatório incluído num banco de dados mantido pela Nasa, a agência espacial americana.

Muitos controladores são apaixonados pela aviação que são sugados pela profissão porque ela pode pagar mais do que US$ 100 mil por ano. Alguns aproveitam a oportunidade para ganhar mais trabalhando além do horário.

Só que a combinação de uma semana de seis dias de trabalho com escalas extensas levou os controladores a desenvolverem problemas de saúde, incluindo mental.

Muitos evitam procurar ajuda porque, ao fazer isso, poderiam colocar em risco os atestados médicos que precisam para trabalhar. Alguns lançam mão de pílulas para dormir ou álcool para aguentar. Outros pedem demissão ou se aposentam.

A FAA estima que mais de 1,4 mil controladores, 10% da mão de obra total, poderiam pedir para sair neste ano fiscal. Jeannie Shiffer, porta-voz da FAA, disse que a agência “mantém o espaço aéreo mais seguro, mais complexo e mais cheio do mundo”. Ela acrescentou: “Os EUA com certeza precisam de mais controladores de tráfego, e aumentar o pessoal resultará em melhores condições de trabalho e mais flexibilidade”.

Desde que o governo Ronald Reagan trocou milhares de controladores em greve, nos anos 1980, a agência têm lutado para manter seu ritmo com ondas de aposentadorias. O problema piorou durante a pandemia de Covid-19, quando a FAA desacelerou o treinamento de novos controladores.