Internacional

Grande estrategista? Criminoso de guerra? Legado de Kissinger reflete as contradições da diplomacia dos EUA

Morte de um dos principais nomes da política externa americana joga luz sobre como o país cortejou ditadores, ajudou a massacrar civis e construiu pontes em momentos tensos da História

Agência O Globo - 30/11/2023
Grande estrategista? Criminoso de guerra? Legado de Kissinger reflete as contradições da diplomacia dos EUA
Henry Kissinger - Foto: reprodução

"Um país de exige perfeição moral em sua política externa não vai conseguir nem perfeição nem segurança". A frase escrita por Henry Kissinger em um artigo de 1990 na Foreign Affairs talvez seja a que melhor explique o pensamento do homem que comandou diretamente a diplomacia dos EUA nos anos 1970, mas cuja sombra jamais deixou o Departamento de Estado e a Casa Branca até sua morte, na noite de quarta-feira, aos 100 anos. Para trás, deixa um legado contraditório, que se confunde com o papel dos Estados Unidos no mundo

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Décadas antes de Joe Biden chegar à Casa Branca e declarar a China o maior competidor (ou rival) de Washington, Kissinger costurou uma aproximação entre os dois países, idealizada por Richard Nixon, celebrada como uma das maiores vitórias diplomáticas do século XX. A assinatura do Comunicado de Xangai, em 1972, não oficializou os laços entre as nações, mas plantou as bases da política de ambiguidade estratégica pela qual EUA reconhecem que há apenas um governo chinês, ao mesmo tempo em que mantêm relações com Taiwan, incluindo uma robusta ajuda militar.

— Ele foi não só o grande arquiteto daquela retomada desse diálogo diplomático lá nos anos 1970, como continiou ao longo da vida sendo um defensor de que os Estados Unidos e a China deveriam manter boas relações diplomáticas, uma relação de proximidade política apesar da divergência ideológica entre os dois governos — afirmou Mauricio Santoro, cientista político e colaborador do Centro de Estudos Políticos e Estratégicos da Marinha.

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A "amizade" se manteve mesmo com Kissinger oficialmente longe da Casa Branca. Santoro lembra que ele ajudou muitas empresas a entrarem no mercado chinês. Em julho, dois meses depois de completar 100 anos, ele esteve em Pequim, onde se encontrou com o presidente Xi Jinping com uma recepção normalmente destinada a chefes de Estado. Na ocasião, Xi disse que "as relações sino-americanas estariam sempre ligadas" ao nome de Kissinger. Nesta quinta-feira, um porta-voz do governo chinês afirmou que ele era um "bom amigo" da China.

— China e EUA deveriam levar adiante a visão estratégica de Kissinger, além de sua coragem política e sabedoria diplomática, e promover o robusto, estável e sustentável desenvolvimento das relações EUA-China — disse Wang Wenbin, porta-voz da chancelaria chinesa.

O legado de Kissinger foi celebrado ainda por seu papel na elaboração dos primeiros acordos de controle de armas nucleares estratégicas entre EUA e União Soviética — o SALT I, de 1969, e o SALT II, de 1979 — e pelo no ato que lhe rendeu um (contestado) Nobel da Paz, em 1973: a negociação do acordo para pôr fim à participação americana na Guerra do Vietnã. A chamada "paz com honra" jamais foi cumprida pelo Vietnã do Norte, comunista, que eventualmente conseguiu unificar o país em 1976.

Crimes de guerra

Apesar de apresentado como apaziguador e construtor de pontes, Kissinger tem uma longa lista de acusações de massacres, violações de direitos humanos e de acobertar ditadores. Um de seus principais críticos, o jornalista e escritor Christopher Hitchens, morto em 2011, enumerou alguns desses crimes em seu livro "O Julgamento de Henry Kissinger" (2001), ao mesmo tempo em que lamentava o fato do personagem de sua obra jamais ter enfrentado a Justiça por seus feitos.

— Kissinger teve também outros críticos muito duros, que cobravam essa responsabilização dele por violações dos direitos humanos, por acusações de crimes de guerra — afirmou Santoro.

A decisão de autorizar bombardeios secretos No Camboja, entre 1969 e 1973, é considerada um crime de guerra cometido pelo então conselheiro de Segurança Nacional de Richard Nixon. Até o fim da vida, ele defendeu a decisão, que só veio a público graças a um repórter do New York Times, William Beecher — em suas memórias, Kissinger disse que o objetivo era eliminar a atividade de tropas comunistas do Vietnã do Norte, e concluiu que a Casa Branca foi "forçada" a agir.

Historiadores apontam que o caos provocado pelos bombardeios contribuiu para o surgimento de um dos mais genocidas regimes do século passado, o Khmer Vermelho, comandado por Pol Pot, e que massacrou mais de dois milhões de cambojanos entre 1975 e 1979. Mais do que isso, Kissinger atuou para que o grupo, também apoiado pela China, fosse reconhecido internacionalmente.

— Você deve dizer aos cambojanos que nós seremos amigos deles. Eles são valentões assassinos, mas não vamos deixar que isso fique no caminho. Estamos preparados para melhorar as relações que temos com eles — disse Kissinger, em 1975, em conversa com o chanceler tailandês.

Além de massacres, como no Camboja e no Timor-Leste, "tolerado" por Kissinger, ele deu aval a golpes antidemocráticos sob a justificativa do "combate ao comunismo". Na América Latina, o apoio ao ditador Augusto Pinochet, que derrubou o presidente Salvador Allende, deu início a uma ditadura de 17 anos, que deixou mais de três mil mortos e levou mais de 200 mil pessoas ao exílio. Os "voos da morte", replicados na Argentina ditatorial, e as torturas nos porões do Estádio Nacional de Santiago levaram a digital de Kissinger.

"Kissinger se encontrou com o general Augusto Pinochet, do Chile, e em uma sessão privada, prometeu ao homem que aboliu o regime civil que os EUA estavam ao seu lado contra a conspiração comunista internacional", escreveu Hitchens, em um artigo de 2004 da Vanity Fair, citando documentos do Departamento de Estado. "Pinochet fez duas referências ao ex-chanceler chileno Orlando Letelier, que foi para o exílio em Washington, e que estava dificultando a vida do regime ao fazer lobby com congressistas. Kissinger não disse nada. Três meses depois, um carro-bomba foi detonado por um veículo que acompanhava Letelier, criando o caos em Washington e matando Letelier e seu assistente."

Kissinger jamais foi processado em vida, pelo contrário: continuou a frequentar a Casa Branca décadas depois de deixar oficialmente o poder. Sua influência permaneceu intacta às denúncias, como as de Hitchens, enquanto continuou fazendo dinheiro com livros, palestras e consultorias e, após sua morte, recebeu homenagens em todos os níveis acadêmicos e de governo.

"Cada vez mais vozes perguntam por que apenas ditadores do terceiro mundo são processados, e não os líderes ocidentais que os levaram ao poder e os apoiaram enquanto cometiam suas atrocidades. Por que Pinochet foi levado ao tribunal mas não Kissinger? Por que Hissène Habré (ex-ditador do Chade) e não os líderes franceses e americanos que o apoiaram?", escreveu, em 2001, o advogado Reed Brody, então na Human Rights Watch, e que participou de vários processos contra ditadores.