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Em abandono: cemitério flutuante tem mais de 120 navios à espera de legislação sobre desmonte

Sem regras para desmanches, navios abandonados no litoral formam ‘cemitério flutuante’; impactos ambientais preocupam

Agência O Globo - 19/11/2023
Em abandono: cemitério flutuante tem mais de 120 navios à espera de legislação sobre desmonte

Em fevereiro, seis meses após idas e vindas pelo oceano, o casco do porta-aviões São Paulo, a maior embarcação que o país já teve, foi afundado a cerca de 350 quilômetros de Pernambuco. A medida foi tomada pela falta de autorização para o navio aportar na Turquia, onde seria desmanchado e reciclado, seguida de nova proibição para atracar no Brasil. A presença de cerca de 10 toneladas de amianto e de outros materiais tóxicos transformaram o casco em um fardo. Sem terem feito viagens sem rumo certo, outros 122 barcos abandonados formam um “cemitério flutuante” no litoral do Brasil, que não tem regras para desmanche de embarcações.

Na ausência de legislação federal, o único tipo de desmonte regularizado é o de plataformas de exploração de óleo e gás, baseado nas resoluções da Agência Nacional de Petróleo (ANP). Mas o debate em torno do tema se reacendeu a partir do caso do porta-aviões e da colisão, há um ano, do navio São Luiz contra a ponte Rio-Niterói.

A embarcação, de 200 metros de extensão, estava abandonada na Baía de Guanabara devido a uma disputa judicial. Após o acidente, a Capitania dos Portos do Rio e a PM identificaram 51 embarcações abandonadas na baía, das quais seis já foram removidas.

Representantes da indústria naval defendem a a aprovação da lei federal 1.584/2021, que tramita na Câmara dos Deputados e dá diretrizes para os desmanches de embarcações. Mas oceanógrafos e especialistas em tratamento de materiais tóxicos alertam para a necessidade de se garantir descartes seguros e limpos.

— A ideia é boa, mas ainda é muito incipiente — afirma o oceanógrafo David Zee, professor da Uerj. — O Brasil depende muito do mar. Estamos até atrasados na preocupação de como fazer essa desmobilização, cujo problema tende a piorar.

Risco de poluir o mar

Zee explica que o maior risco do abandono é a liberação de poluir o mar. O amianto, que era usado como isolante térmico, só foi proibido pela IMO, a organização internacional marítima, em navios construídos depois de 2000. Das embarcações abandonadas, muitas possuem a substância.

Os principais mercados de desmanche de navios estão no sul da Ásia, como Bangladesh, Índia e Paquistão, além da Turquia. Com leis ambientais frágeis, os estaleiros desses países conseguem preços vantajosos e atraem muitos projetos de reciclagem. Mas deixam sequelas no ambiente.

— Dependemos de arcabouço legal para ter esse mercado de forma segura e eficaz e que não transforme as baías em cemitérios de navios — defende Zee.

Fernanda Giannasi, presidente da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), é cética quanto às possibilidades de reciclagem segura. Ela diz que, de acordo com último relatório do Ministério do Trabalho, só há três aterros sanitários certificados para receber material perigoso.

— Podemos ter empresas sérias, que vão seguir as normas no desmanche. Mas o problema é para onde serão levados esses resíduos tóxicos. Temos poucos aterros de lixo perigoso, corremos risco de ver lixos amontoados por aí — avisa.

Oficial da marinha mercante que trabalhou no inventário de materiais perigosos, Vitor Máximo defende a regulamentação.

— Tudo tem método e tratamento. Temos empresas que fazem reciclagem e tratamento de chumbo, mercúrio e até material radioativo.

No setor petroleiro, a previsão do desmantelamento é uma das regras para se obter a licença de operação. Hoje há 190 plataformas no país: 117 em funcionamento e 73 fora de operação. A ANP prevê R$11,3 bilhões de investimentos em descomissionamento no ano que vem. Mas restam dúvidas sobre os destinos de embarcações menores.

— Quando vai descendo a escala e o porte dos navios, a cobertura legal piora. Não existe regulamentação bem estabelecida e o que temos é uma adequação — explica o biólogo marinho Leandro Amaro, que já trabalhou na desmontagem de navios e plataformas de petróleo. — Quando vemos uma embarcação abandonada, normalmente são casos que não se prepararam para descomissionamento, por falta de cobrança e de entendimento. Desde embarcações pequenas de pesca artesanal a estruturas de maior porte.

O biólogo explica que o preço do aço no mercado internacional era um dos principais motivos para o setor não se interessar pela reciclagem de embarcações menores. Após a pandemia e com a guerra na Ucrânia, porém, o preço aumentou. Mas muitas empresas ainda optam pelo abandono ou envio para o exterior. Outro destino é a reciclagem clandestina.

No descomissionamento, todos os elementos que podem contaminar a natureza precisam ser removidos. O aço é o componente mais reaproveitado, além do cobre e de peças com níquel. Parte da maquinaria, cabeamento e sistemas elétricos também tem valor. O simples abandono, explica Amaro, pode gerar um efeito de bola de neve.

— Resíduos de óleo e metais pesados são liberados no mar e entram na cadeia alimentar. Isso afeta a fauna local e até os humanos, pelo consumo de peixe.

Nos casos das plataformas, ainda há exigência para tratamento de micro-organismos nos cascos. A grande preocupação no Brasil é o coral-sol, espécie invasora que precisa ser incinerada ou levada a aterros.

Além das normas da ANP, o país só possui como regra federal uma orientação técnica do Ibama, que cita a necessidade de se entregar um projeto de desativação dentro do Estudo de Impacto Ambiental nas licenças de operação de navios. Mas não há lei específica que determine essa obrigatoriedade.

Professor de engenharia naval da UFF, Newton Pereira foi um dos colaboradores da redação do projeto de lei 1.582, que define as regras para descomissionamento de embarcações.

— Podemos criar um mercado nacional, dando ocupação para instalações de reciclagem e estaleiros — defende Pereira, que diz ser possível haver 95% de reaproveitamento nas reciclagens .

Procurada, a Marinha afirmou que faz ações de fiscalização do tráfego aquaviário diariamente, e que, por lei, pode pedir a proprietários a remoção ou demolição de embarcações quando houver “perigo, obstáculo à navegação ou ameaça de danos a terceiros ou ao meio ambiente”. Entretanto, muitas dessas determinações são barradas na justiça, acrescentou.

O Ibama informou que acompanha descomissionamentos de navios ligados à produção de óleo e gás, mas que para outros barcos a previsão de desmantelamento precisa constar nos licenciamentos dos órgãos estaduais do meio ambiente. Em casos de abandonos irregulares, o Ibama notifica proprietários. Nos últimos três anos, só houve três requisições para exportação de navio para desmantelamento adequado no exterior, informou o instituto.