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Além de Mengele: estudo mostra como classe médica alemã consentiu com os horrores nazistas

Pesquisa publicada na revista The Lancet destaca como a ciência alemã, a mais avançada em seu tempo, foi degenerada por uma ideologia nacionalista

Agência O Globo - 09/11/2023
Além de Mengele: estudo mostra como classe médica alemã consentiu com os horrores nazistas
medicos - Foto: Agencia Brasil

Anita Andres não havia completado sequer dois anos quando entrou no centro que atendia crianças com problemas de desenvolvimento em Mosbach (Alemanha). A menina não tinha atingido as médias cognitiva e física para sua idade. Era 1941 e o regime nazista, anos antes, aprovou a esterilização de pessoas com algum tipo de deficiência e, caso engravidassem, o aborto forçado. Mas para as crianças com algum transtorno cognitivo ou incapacidade física, bastou uma ordem ministerial em 1939.

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Anita foi levada, ao lado de outras 52 crianças, para o Hospital Universitário Psiquiátrico de Heidelberg. O local era dirigido por Carl Schneider, um dos mais reputados psiquiatras de sua época. Ele comandava um estudo que buscava estabelecer as diferenças entre os déficits de desenvolvimento congênitos e os adquiridos nos primeiros meses ou anos de vida. Schneider era também responsável pelo Aktion T4, o programa estatal de eutanásia.

Depois de ser estudada, Anita foi assassinada e, como ela, outras 10 mil crianças com algum tipo de deficiência. A revista médica The Lancet acabou de publicar um informe repleto de histórias como as de Anita. Um dos objetivos do trabalho, publicado 90 anos depois da ascensão de Hitler ao poder, é que os atuais e futuros médicos não se esqueçam do horror que degenerou a ciência e a prática médica.

A medicina no período nazista é tristemente famosa hoje sobretudo pelos experimentos que realizaram personagens como o médico Josef Mengele, com os prisioneiros no campo de extermínio de Auschwitz. Mengele, primeiro destinado ao campo onde ficavam os ciganos, se tornou chefe de enfermaria do complexo de Auschwitz-Birkenau. Seu poder sobre quem morria e quem vivia mais um pouco era absoluto. Aos pés das rampas dos trens que traziam os judeus como se fossem gado, vindos de toda a Europa, Mengele decidia com um gesto quem iria para as duchas, isso é, as câmaras de gás, e quem iria para para os trabalhos forçados. Suas investigações, especialmente com os gêmeos, foram infames, sem qualquer respeito pela condição humana.

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Personagens sinistros como Mengele e Schneider impedem ver o drama real. O professor Herwig Czech, da Universidade Médica de Viena, co-diretor da comissão responsável pelo informe, lamentou em uma nota que “nos surpreende o quão pouco sabemos dos crimes médicos dos nazistas, além de uma ideia vaga dos experimentos de Josef Mengele em Auschwitz”. Longe dessa imagem estereotipada, a situação foi muito pior e mais além de alguns poucos médicos.

Logo na introdução do estudo se pode ler: “A falácia mais danosa sobre a medicina no nazismo e no Holocausto talvez seja a ideia de que as atrocidades médicas foram obra de alguns profissionais radicalizados, de forma individual.”

A ideia das maçãs podres é refutada pelos dados reunidos no relatório. Entre as profissões liberais, deixando de lado os funcionários públicos, os médicos foram os que mais aderiram em massa ao NSDAP, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Cerca de 65% dos médicos eram filiados ao final da guerra, segundo o estudo. Provavelmente, muitos o fizeram por simples oportunismo, mas também pesou, dizem os autores da pesquisa, o pensamento autoritário entre os profissionais, e sua convicção pessoal de que os judeus contaminavam o povo alemão.

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Outro dos mitos que o trabalho tenta desmontar é a visão de que não foi a ciência alemã, mas sim uma espécie de pseudociência que encontrou um terreno apto entre os nazistas. Essa minimização ou justificativa poderia vir, ao menos em parte, do desejo da comunidade médica de se distanciar e de afastar uma investigação sobre quem cometeu os crimes.

O relatório lembra que muitas das pesquisas realizadas durante o regime nazista foram publicadas em revistas científicas (o mecanismo habitual para a validação de resultados). Algumas descobertas foram lidas e aplicadas em todo o mundo por décadas, e acabaram integradas ao conhecimento médico geral, muitas vezes sem mencionar suas origens obscuras.

Durante os julgamentos de Nuremberg, que julgaram os chefes nazistas e seus cúmplices, como alguns médicos, foram revelados uma série de experimentos de altitude e hipotermia, realizados pelo médico do campo de Dachau Sigmund Rascher. Apesar de seus resultados serem sempre mortais, a Força Aérea dos EUA não titubeou em usá-los. Como reconhece o estudo na Lancet, muitos dos cientistas envolvidos nas pesquisas, como Siegfried Ruff e Hubertus Strughold, foram recrutados imediatamente depois da guerra pelo Exército americano.

Strughold teve uma carreira de destaque no programa espacial dos EUA, sendo considerado o pai da medicina espacial. O esquecimento chegou até ao nome de doenças que, como acontece com as síndromes de Asperger ou de Reiter, trazem os sobrenomes dos médicos nazistas que enviaram seus pacientes para a morte.

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O informe tenta não demonizar especialmente a ciência ou a medicina alemãs da época. Houve outros casos de cumplicidade das autoridades para cometer genocídios, mas o caso alemão é especial. Os autores destacam, por um lado, que essa é a história de horror com mais documentos, apesar das tentativas de eliminar muitas provas quando o destino da guerra estava decidido.

Mais importante é, segundo os membros da comissão, que, naquele momento, a Europa e sua ciência representavam o ápice do progresso humano, e no ponto mais alto estava a ciência alemã. Além disso, a bioética nasceu ali: em 1900, quando uma série de experimentos com sífilis em mulheres e crianças causou um escândalo, as experiências com seres humanos foram regulamentadas, antes que qualquer outro país fizesse isso.

Em outros casos, o regime nazista e seus médicos apenas copiaram o que se fazia em outros lugares: as primeiras leis de esterilização forçada foram aprovadas na Suíça e na Dinamarca, antes da chegada de Hitler ao poder. E a própria lei alemã aprovada em 1033 estava inspirada em um projeto de um senador dos EUA. Naquele país, milhares de mulheres de origem latina foram esterilizadas na primeira metade do século XX, e as pessoas com deficiências tiveram o mesmo destino até os anos 1970.

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Do espanto causado pelos nazistas e de seus julgamentos em Nuremberg nasceram as primeiras normas internacionais sobre o tratamento dos pacientes e, em particular, o consentimento informado para testes em humanos. O professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e co-autor do estudo, Shmuel Pinchas Reis, ressalta, em nota, a importância de olhar para esse passado e jamais esquecê-lo:

“Nosso estudo mostra algumas das distorções mais horríveis da prática e das políticas médicas da história, e cabe a todos na comunidade médica e sanitária evitar que desapareça a lembrança de todos os acontecimentos da era nazista. Devemos estudar essa história do pior da humanidade, para reconhecer e trabalhar contra padrões similares no presente, com o objetivo de promover o bem”, diz no texto.