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Túneis, reféns, drones-bomba e armadilhas: os desafios de Israel em uma guerra urbana em Gaza

As forças israelenses enfrentam um Hamas disposto a tudo, com um contingente maior, anos de preparo e conhecimento minucioso do terreno onde será a batalha

Agência O Globo - 29/10/2023
Túneis, reféns, drones-bomba e armadilhas: os desafios de Israel em uma guerra urbana em Gaza
Foto: Reprodução

Um exército, o de Israel. Uma guerrilha, o Hamas. Um cenário, Gaza. Falta apenas a ordem final para a invasão por terra. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu garante que isso acontecerá, mas não diz quando, como ou em que escala. Nesta nova etapa da guerra, as áreas urbanas da Faixa, um dos territórios mais densamente povoados do mundo (5.500 habitantes por quilômetro quadrado), serão decisivas. Israel deixou claro que não quer permanecer dentro daquele ninho de vespas, mas, sim, destruir a estrutura política e bélica do Hamas e depois partir. Alcançar isso em um curto espaço de tempo e com custo reduzido de vidas é algo que está além das previsões, segundo os especialistas consultados. Na memória, batalhas como Fallujah ou Mossul, no Iraque, ou, mais recentemente, Mariupol e Kramatorsk, na Ucrânia.

"O Hamas está ciente de que não pode derrotar o Exército israelense", apesar da sua “arma principal”, que é a rede subterrânea de túneis e os cerca de 230 reféns capturados, afirma John Spencer, um importante especialista em guerra urbana e, durante 25 anos, um oficial da Infantaria no Exército dos EUA.

A sua previsão, durante uma entrevista telefônica, é de uma batalha de semanas e provavelmente meses, que deixará a Cidade de Gaza praticamente destruída e milhares de mortos. No terreno, será necessário mobilizar não batalhões ou brigadas, mas várias divisões (mais de 10 mil soldados cada), estima Kobi Michael, analista do Instituto de Estudos de Segurança Nacional (INSS), centro de estudos israelense.

— Será uma operação muito cara, mas não temos outra escolha senão ir até ao fim. Não vamos voltar à realidade antes de 7 de outubro — disse ele, referindo-se ao dia do ataque-surpresa do Hamas, que deixou cerca de 1.400 mortos em Israel, e convencido de que o país vai pôr fim ao grupo a qualquer preço, depois do golpe sofrido naquele dia.

O Crescente Vermelho Palestino não tem um protocolo específico em Gaza para quando ocorre uma invasão militar terrestre, segundo seu porta-voz, Nebal Farsakh.

— Como organização humanitária, temos muitos planos de emergência e contemplamos diferentes cenários que atualizamos todos os dias, mas o que está acontecendo neste momento em Gaza ultrapassa todos nós, não temos capacidade de resposta, não há plano para enfrentar esta destruição , esta escalada e o bloqueio. A situação nos oprime e nos parte o coração — explica ele por telefone.

Dois outros fatores, além das galerias escavadas no subsolo, fazem desta uma operação militar diferente das anteriores no enclave palestino. Por um lado, a presença em Gaza, até agora inédita no conflito, de mais de 200 reféns capturados pelo Hamas em território israelense. Por outro lado, a morte de centenas de milicianos, muitos deles os mais bem treinados, durante o ataque-surpresa, que desencadeou o atual conflito.

Ajuda dos EUA para guerra urbana

O poder militar de Israel, com 170 mil membros ativos e um recorde de 360 mil reservistas mobilizados para a ocasião, dos 465 mil de que dispõe, é muito superior ao do Hamas. O Exército também dispõe de tecnologia muito boa, cerca de 2.200 tanques — incluindo o poderoso Merkava IV — e um aliado clássico, os colaboradores de Gaza no terreno. Os bombardeios na Faixa desde 7 de outubro causaram até agora mais de 8 mil mortos palestinos. Apesar de tudo, para apoiar a invasão, o Pentágono enviou a Israel uma equipa de assessores militares, com um general de três estrelas no comando, com experiência em batalhas urbanas como as de Mossul ou de Fallujah, no Iraque, conforme foi publicado esta quarta-feira pelo jornal Financial Times.

Perante este arsenal do Exército israelense, o Hamas tem conseguido preparar-se e equipar-se com a ajuda do Iro, o seu meio de subsistência, e dispõe de drones-bomba, foguetes mais modernos e, não devemos esquecer, “pessoas dispostas a morrer”, detalha Spencer, o especialista em guerra urbana.

— Eles estão dispostos a sacrificar-se e a lutar até ao fim — comenta Kobi Michael no mesmo sentido numa conversa telefônica de Chipre, onde está encurralado pelos problemas de tráfego aéreo que a guerra gerou em Israel.

Portanto, o Exército israelense não tem outra escolha senão “saturar” Gaza com soldados.

Hamas pode ter até 30 mil homens

Spencer estima que o Hamas pode contar hoje com até 30 mil homens, em comparação com 5 mil em conflitos anteriores. Apesar de todas as perdas sofridas, é “uma grande incógnita” o que pode acontecer. É também uma vantagem para o lado defensor esperar pelo inimigo no seu próprio terreno, que conhece bem e onde se move como um peixe na água. Nesse sentido, o fato de poderem manter as pessoas sequestradas no sistema de túneis impedirá, em princípio, que os israelenses destruam as galerias subterrâneas.

Esta rede, popularmente conhecida como “metrô”, é, juntamente com o tempo que ganharam, a “arma primária” do Hamas, o que lhes permite desenvolver “táticas de guerrilha”, entende o analista americano. Segundo Spencer, o Hamas teve muitos anos para se preparar para este momento, já que em invasões anteriores, como as de 2008 e 2014, as tropas israelenses “não se aprofundaram nas áreas urbanas”.

— Agora é uma luta diferente, eles precisam limpar a cidade. Entrar, destruir os túneis, os mísseis, os líderes militares do Hamas e os seus combatentes.

Mas essa fortaleza “escondida” força “uma luta completamente diferente porque o Hamas pode escapar de muitos dos bombardeios” e da “inteligência aérea”, segundo este veterano analista da guerra do Iraque. Os integrantes do grupo tiveram “muito tempo” para se prepararem com a rede de túneis e armadilhas explosivas, concorda Yaakov Katz, analista de defesa e ex-correspondente militar do jornal Jerusalem Post, ao mesmo tempo que alerta para o “uso cínico” que provavelmente farão dos civis como “escudos humanos”.

— Temos de lidar com o fato de que é no subsolo onde estão a infraestrutura militar e a maioria dos terroristas do Hamas, os seus líderes, a sua capacidade de tomada de decisão e as suas armas. E presumo que juntamente com os reféns — afirma Michael. — Não temos apenas que chegar ao último lançador de granadas, ao último Kalashnikov ou ao último terrorista, o fator determinante será chegar ao seu centro de gravidade.

'Vão estar à nossa espera'

Em todo o caso, sustenta, “temos que ter muito cuidado porque eles vão estar à nossa espera com armadilhas e devemos surpreendê-los”, alerta.

O desafio de acabar completamente com a milícia fundamentalista é difícil de alcançar, reconhecem os especialistas consultados.

"Erradicar o Hamas é um grande desafio e é algo complicado de definir com exatidão. (...) O que Israel mais pode fazer na prática é reduzir as capacidades do Hamas, bem como matar ou capturar o maior número possível de combatentes e destruir a sua infraestrutura militar. Ou seja, não deixar que sejam capazes de repetir o que fizeram no dia 7 de outubro”, afirma Katz por e-mail, sem descartar que enquanto houver membros vivos, a organização pode ressurgir.

"O fator diferenciador fundamental do campo de batalha urbano de Gaza é a terceira dimensão: túneis subterrâneos, edifícios altos e intensa guerra de drones acima", disse por e-mail Michael Knights, analista do centro de estudos The Washington Institute. "O Hamas levará a guerra clandestina a novos extremos."

Segundo a estimativa de Knights, as 9 mil mortes registadas na batalha pela cidade iraquiana de Mossul, em 2017, contra o Estado Islâmico poderão ser ultrapassadas em Gaza.

Israel, acrescenta Spencer, “não só precisará das suas capacidades militares”, mas também de “inteligência [informação]” e de “subornos” à população local para comprar informação e colocar as pessoas sequestradas no menor risco possível. O Catar é o pivô sobre o qual giram as negociações para avançar com as libertações, embora até agora o Hamas só tenha libertado quatro mulheres.

— Temos que assumir que nem todos conseguirão sair vivos — admite Michael, que também é professor na Universidade do Sul de Gales.

John Spencer recorda, sem o mencionar nominalmente, o caso de Gilad Shalit, um soldado israelense que foi sequestrado e mantido em Gaza durante cinco anos até ser trocado por mil prisioneiros palestinos. O Hamas pediu estes dias a libertação de milhares de prisioneiros das prisões israelenses — atualmente chegam a dez mil — em troca dos mais de 200 que tem e em seu poder.

Ataques preparatórios

Além de limpar o terreno com ataques aéreos, Israel realizou vários ataques, especialmente nos últimos três dias, liderados por colunas de tanques. Trata-se de testar o terreno realizando trabalhos de inteligência para descobrir as posições do inimigo, sejam militares ou de seus comandantes, ou possíveis locais onde possam manter reféns, bem como eliminar possíveis armas antitanques da linha de frente e líderes do Hamas. Os bombardeios aéreos não irão parar depois que as tropas terrestres penetrarem, garante Spencer. Será a vez dos ataques mais controlados, a partir de uma altura mais baixa graças a drones, helicópteros ou aviões que podem voar mais baixo.

Kobi Michael prevê, ainda, que “os cidadãos serão informados de que, se não abandonarem a área, serão considerados terroristas do Hamas e serão mortos, porque não haverá distinção entre terroristas do Hamas e civis inocentes”.

— Não existe um único lugar seguro em toda Gaza — diz Abdalla Hasanen, um morador de 23 anos de Rafah, a cidade mais ao sul da Faixa e na fronteira com o Egito. — Nasci aqui, sempre vivi aqui e testemunhei muitas escaladas [na guerra] e ataques, mais do que sou capaz de contar”.

Hasanen é um jovem ativista da organização Não Somos Números, que tenta dar rosto a essa população muitas vezes escondida atrás de números impessoais.

— Não estamos preparados para esta limpeza étnica. Mesmo que cheguem aqui a Rafah, não planejamos sair de Gaza — afirma.